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1.9.04

O difícil diálogo das gerações


É comum ver pessoas reclamando que as crianças vêm sem manual. Elas se esquecem dos idosos, principalmente os que não são nossos, mas contraídos nas núpcias. Se formos estabelecer comparação, com os pequenos é até fácil conciliar o trabalho em casa. Como os recém-chegados a este mundo não têm idéias pré-concebidas sobre local de trabalho ou sobre o gênero de quem deve garantir a entrada de dinheiro na conta corrente, não acham que o fato de você passar a tarde em casa e fora da cozinha significa ócio e disponibilidade. Além disso, por alguma razão, os pequenos são mais sensíveis a uma folha de papel, alguns lápis de cor e a frase “Faz um desenho bem bonito pra mim”. Também costumam reagir melhor quando a gente sugere que assistam a Shrek pela trigésima nona vez.

O diálogo abaixo é típico em um dia que você está cheio de trabalho. Você está sentado ao computador desde cedo dando duro. O representante da terceira idade que lhe cabe nesse latifúndio chega da rua.

- Bom dia!
- Bom dia!
- Alguém morreu.
- O quê?
- Tem um cartaz no elevador avisando da morte de alguém?
- É? Quem?
- Não sei.
- Ah!
- Quer dizer, o nome está lá, mas eu esqueci.
- Deve ser o seu Oswaldo. Ele teve um derrame e caiu na garagem outro dia. Falei com a filha dele na portaria anteontem e ela disse que não tinha muita esperança.
- Ah, deve ser esse mesmo. Era aquele gordo, né?
- Não ele era magro.
- Então não sei quem é.
- Pois é, deve ter sido seu Oswaldo mesmo. Mas não vou poder ir ao sepultamento porque estou muito ocupada hoje, cheia de trabalho pra entregar.
- Mas como é que ele era?
- Era um senhor moreno que ficava sempre ali pela garagem.
- Ah! Aquele que tem duas filhas moças?
- Não, aquele é seu Zé. E ele ainda é jovem. A filha me falou que seu Oswaldo ia completar 80 anos agora em setembro.
- Então não era tão velho assim.
- Ahn!? Ah, sim. Não era tão velho.
- Deve ter sido por ele ser gordo.
- Ele não era gordo. O gordo é o português.
- Ah, é. Mas é uma pena, né? Deixar mulher e duas filhas tão novinhas ainda.
- O que tem as duas filhas é o seu Zé, é outro.
- Mas você não falou que era o que ficava na garagem.
- Falei, mas acho que foi o seu Oswaldo que morreu, o mais velho, o que já ia fazer 80 anos.
- Mas você não disse que ele ainda era novo?
- Ahn!? Ah, é. Pois é.
- E quem colocou o anúncio no elevador?
- Não sei. Deve ter sido a filha dele.
- Tem um erro de ortografia nele.
- Coitada, deve estar abalada, né? Nessas horas essas coisas escapam.
- Imperdoável.
- Então tá.
- Você vai ao enterro?
- Não, tenho muito trabalho hoje. Já estou atrasada. Dá licença.
- Você conhecia bem o falecido?
- Não muito.
- Deve ter sido por causa da bebida né?
- Bebida!?
- É, toda vez que eu passava ali na esquina ele estava no bar bebendo.
- Não! Aquele é o português gordo, que... [Ai, meu Deus!] É, tá bom, deve ter sido.
- Será que na hora que estava bebendo, não pensava na mulher e nas duas filhas?
- Um-hum...
- Deve ter sido por isso que tem um erro ortográfico no anúncio do elevador. As filhas devem ter estudado em escolas horríveis enquanto ele gastava todo o dinheiro da família enchendo a cara no botequim.
- Tá bom, me dá licença agora. Preciso terminar este trabalho.
- Ele teve o derrame e caiu na garagem?
- Foi.
- Deve ter caído de bêbado, isso sim. E depois é que teve o derrame.
- [Oh, senhor!] Anh-hã! Olha, preciso terminar isso aqui e...
- E deve ter ficado lá um tempão sem ninguém socorrer porque todo mundo sabia que ele bebia e pensou que fosse só mais um pileque.
- Na verdade ele foi atendido na hora, porque a porteira estava conversando com ele quando ele caiu e chamou a filha que o botou no carro e levou pro hospital.
- Mas aquela menina tão novinha já dirige? E como é que conseguiram levantar e colocar aquele homem gordo dentro do carro?
- A filha do seu Oswaldo não é novinha. Ela tem um filho adulto. E o gordo é o outro... Olha, quer saber? Não sei. Aliás, nem sei se foi mesmo o seu Oswaldo que morreu. [Respira. Conta até dez.] Olha só. Estou cheia de trabalho, não dá pra continuar agora. Depois a gente conversa mais, tá?
- Tá. Tá bom, tá bom! Já vou deixar você em paz. Não vou mais incomodar. Pode deixar. Não precisa se incomodar.
- Obrigada.
- Mas já contei que tem um anúncio fúnebre no elevador?

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