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4.6.10

Todos os textos, do passado e do presente.
Junho/2010
Ana González www.agonzalez.com.br

Impossível não se encantar com os poemas de um caderno amarelado pelo tempo - facilmente imaginado pelo leitor -, e também com as crônicas que retratam um cotidiano cheio de vida, no livro Fel, amargando felicidade de Carla Cintia Conteiro (Rio de Janeiro: Edição do Autor, 2009).

Nos poemas, encontramos o retrato de relações afetivas em que há violência, pois “sob seus pés seguros de partida me amassa” e dor, pois há um “quase” entre o desejo e a crua realidade.
Nesse embate com a subjetividade, há sinais de uma adolescente que anseia por respostas: “E viajando nesta estrada/ que dizem levar à maturidade/ só espinhos, só tristezas, só silêncio/ por parte dos donos da verdade”.

Encontramos também questionamentos de quem se sabe lutadora, sonhadora e viva, tentando sobreviver a seu jeito: “Para aguentar/ o engarrafamento/as manchetes garrafais/só uma garrafa bem cheia/ de líquido amniótico/ que me cure desta sensação de morte”. E de quem se sabe agindo ativamente em tempos de passagem: “Estou de branco/porque assisto a um parto/sou a mãe que me dá à luz/ sou a criança parindo adulto”.

Há espaços de alívio, seja para achar um amor e “passear na lua” seja para o sorriso mudo do amigo. E aspectos da realidade social, ainda que em pequenas doses, como a personagem do boia-fria ou a ascendência africana: “Tenho orgulho dos meus olhos escuros/ meu cabelo crespo/e minha alma/ acima de tudo, negra africana.”.

Nesses poemas iniciais, estão indícios importantes que se marcam firmemente nas crônicas de Carla Cintia.

Denominar a segunda parte do livro de O cotidiano indica certa prudência, até desnecessária. Trata-se de crônicas que nos levam mais longe do que a básica realidade da vida diária.

Li de um sopetão os textos todos, voltei a eles procurando coisas que tinham ficado meio perdidas na memória. E, na hora de parar e pensar o conjunto, só consegui seguir a linha da leitura às avessas. Começando pela prosa. Deixei os poemas por último, talvez pela força das palavras quando se alinham uma após outra sem interrupção, proseando numa descrição sem rodeios.

Esse texto assim forte passa pela realidade em todas as suas cores, trazendo o impensável, a surpresa, a comédia e a tragédia. Com variações, entre o cômico deslavado e a ironia sutil, ente a tragédia e a banalidade cotidiana.

À primeira vista, o que fica mais forte, são as referências de mundo, expressando uma enorme curiosidade, que vaza fartamente pelos textos: pitadas gordas de cultura cinéfila, música popular e literatura brasileiras, a contracultura, figuras da política, da religiosidade, da arte e de outras áreas da cultura. Encontramos também sinais de uma realidade carioca, dos bairros da cidade e muitos traços de um diálogo da autora com as marcas das épocas e daquilo que as faz diferentes umas das outras. Passeamos por “jaleco com estampa de caveiras” e nos solidarizamos com camisetas velhas e furadas.

Há dados da natureza humana em seus aspectos negativos e especiais soluções positivas: “ ...escolho continuar acreditando que as pessoas são boas, de uma forma geral e que os pérfidos, vis e torpes são a exceção.”

O bom humor acontece abrindo espaços: “Será que é sintoma de esquizofrenia não associar aquele pedaço de carne congelada do supermercado ao bicho engraçado dado às ciscadas?”, em meio a pontos de ironia e fina observação: “Como saber da altura do banquinho? Como saber quantas pessoas permanecerão na sala quando começarmos a expor nossa pequena imortalidade?” ou ainda em “Pouca gente é capaz de introjetar a desimportância que pode representar para o outro, a indiferença e desinteresse que pode suscitar.”

Todo esse conjunto de aspectos, sérios, bem humorados e irônicos, configuram um quadro de nossa condição humana, desvendada em seus variados níveis e desenvolvidos na experiência dos relacionamentos.

Encontros impensáveis despontam na rotina diária, quando “lá estávamos, a pústula e eu, nos encarando mutuamente através do espelho...”. A realidade nos visita, apontando para a complexidade das situações da vida e dos afetos, nem sempre simples: “Só o amor é grátis”. Mesmo assim, cabe uma ressalva e, sem amargor, como óbvia constatação e sinal de coragem: “ainda assim sempre haverá pensões de ex-cônjuges, reclamações de esposas...”.

E junto a essa coragem e força de encarar a realidade sem dó, nem fantasias, uma sutil presença do mundo feminino pontua o olhar e a sensibilidade da autora: “...lembro que quando engravidei, sentia um poder enorme, por gerar uma vida.”

E, uma última razão para o encanto do leitor vem da poesia que surge assim na p.84 “Subi as escadas do prédio antigo, brincando de claro e escuro com suas clarabóias. No fim dos degraus, a viajante do tempo me aguardava com cheiro de feijão.”

A realidade e a poesia se encontram também na p.94 : “Meu relógio faleceu bizarra e melancolicamente. Enquanto me recuperava do susto e anunciava a sua morte, esqueci do que estava fazendo. A garrafa d’ água ficou abandonada sob a torneira aberta do filtro.” Ou ainda na p.95: “Levo minhas sandálias rasteiras para passear por estas calçadas, ignorando o sol estorricante e adiando quase indefinidamente para a próxima quadra a entrada em um transporte que me traria para casa.”

São momentos em que as palavras ganham liberdade e se soltam. Dizem então coisas por si mesmas, como se a autora as tivesse liberado.

Crônicas são fotos rápidas, fugidias. Poemas, nem tanto. Juntar os dois é tarefa difícil. Neste livro, a presença de ambos explica a trajetória da autora junto às palavras. Poemas que se querem prosa e, às vezes, prosa que se quer poema.

Dos poemas às crônicas permeadas de cotidiano e de vida presenciamos o amadurecimento da autora. O início e o momento presente. A passagem do tempo, o trabalho da memória, o resgate da experiência. O amor pela expressão escrita desde sempre construindo momentos encantados para nossa leitura.

(O livro FEL - Amargando Felicidade está à venda no Clube de Autores)

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