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19.9.03

A primeira vez que ouvi sobre Santa Maria Egipcíaca foi num livro de António Alçada Baptista chamado Os Nós e os Laços. Depois descobri que também Manuel Bandeira já havia encantado-se com sua história, literalmente incrível.

Para resumir a história, Maria Egipcíaca, natural do Egito, abandonou a casa paterna aos 12 anos de idade e se tornou pecadora escandalosa. Tinha 29 anos quando, tocada pela graça, converteu-se e fugiu para um local isolado, na Palestina, onde passou 47 anos sem ver nenhuma criatura humana e fazendo as mais austeras penitências.

Ela vivia nua no deserto, porque suas roupas rasgaram-se com o tempo e alimentava-se (por 47 anos!) de três pães que levara para lá quando de seu exílio.

A história fica ainda mais fascinante quando a gente a lê como publicada em Legenda Áurea (Vidas de Santos), de Jacopo de Varazze. Para se ter uma idéia, esse livro, uma reunião de biografias de santos, foi escrita no século XIII "com a intenção de difundir valores morais edificantes e arregimentar um maior número de fiéis para a Igreja Católica". Com a moda de as editoras distribuirem capítulos de cortesia nos balcões das livrarias, a biografia de Maria Egipcíaca acabou caindo de bandeja no meu colo. O mais interessantes são as descrições detalhadas dos pecados da santa que é freqüentemente confundida com sua colega Maria Madalena (as duas foram prostitutas e fugiram do pecado no deserto).

"Entreguei-me publicamente à libertinagem."
"Nunca me recusei a quem quer que fosse."
"Não tenho dinheiro, irmãos, mas posso entregar meu corpo como pagamento."
"Durante os primeiros dezessete anos passados neste deserto fui atormentada pelas tentações da carne."

(Legenda Áurea, Jacopo de Varazze, Companhia das Letras)



Balada de Santa Maria Egipcíaca
(Manuel Bandeira)

Santa Maria Egipcíaca seguia
Em peregrinação à terra do Senhor.

Caía o crepúsculo, e era como um triste sorriso de mártir.

Santa Maria Egipcíaca chegou
À beira de um grande rio.
Era tão longe a outra margem!
E estava junto à ribanceira,
Num barco,
Um homem de olhar duro.

Santa Maria Egipcíaca rogou:
- Leva-me ao outro lado.
Não tenho dinheiro. O Senhor te abençoe.

O homem duro fitou-a sem dó.

Caía o crepúsculo, e era como um triste sorriso de mártir.

- Não tenho dinheiro. O Senhor te abençoe.
Leva-me ao outro lado.

O homem duro escarneceu: - Não tens dinheiro,
Mulher, mas tens o teu corpo. Dá-me o teu corpo, e vou levar-te.

E fez um gesto. E a santa sorriu,
Na graça divina, ao gesto que ele fez.

Santa Maria Egipcíaca despiu
O manto, e entregou ao barqueiro
A santidade da sua nudez.

(Ritmo Dissoluto, Manuel Bandeira)



"No texto acima, mais do que à relação opositiva santa/prostituta, segundo a interpretação de Affonso Romano de Sant'Anna, é preciso ater-se ao sentido mais profundo da própria negação do pecado carnal. Com efeito, mesmo considerando a notícia biográfica de que Santa Maria Egipcíaca fora uma prostituta durante sua mocidade, no texto ela aparece como santa, e o corpo que ela entrega ao barqueiro não é o de uma mulher fácil, mas de uma jovem virtuosa. O verso final, a santidade da sua nudez, contém o sentido colocado no poema todo: nudez e santidade não são elementos opostos, antagônicos. Se a nudez é natural e a natureza é criação de Deus, logo a nudez é divina, santa. O pecado não está no corpo, mas na mente; não no ato, mas na intenção. A protagonista do poema, ao entregar-se sexualmente ao barqueiro, não está cometendo um pecado, mas uma obra de caridade, satisfazendo o desejo de um homem triste e abrutalhado pela solidão em que vivia. O amor verdadeiro consiste em fazer a felicidade do outro, não de si; reside em atender com um sorriso (note-se, no poema, a relação entre o sorriso do mártir e o sorriso da santa) às necessidades de quem nos solicita. Acima da doxa, a opinião comum ditada pelas injunções morais, eleva-se o paradoxo poético, revelador de uma verdade não-aparente, convencional, mas profunda, porque atinge a própria essência da natureza humana."
(Teoria do Texto 2 - teoria da lírica e do drama, Salvatore D'ONOFRIO, Ática, 1995)




Ilustrações:

1 - La Juventud de Santa Maria Egipciaca, Emil Hansen Nolde
2 - Relevo da fachada do Colegio de Franciscanos Capuchinos de Santa María Egipciaca (fundado em 1612 em Alcalá de Henares, Espanha), que representa São Zózimo dando a comunhão a Santa Maria Egipciaca

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