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3.5.04

Estranhos no paraíso
(Paulo Blank)


Não fosse a cobra, falaríamos todos a mesma língua clara, sem subterfúgios. Foi ela que introduziu a sedução como modo de desviar o outro do próprio caminho. Sua fala enganadora nos expulsou do paraíso da transparência. Foi sobre isso que conversei com o vendedor de cachorro-quente na esquina de casa, em Botafogo. Gilberto, um Bíblia, como se dizia, vive pregando e tentando me converter. Inteligente, daria bom pastor de almas. Ando até pensando em propor-lhe uma esquina de estudos bíblicos, um Café Philo tropical.

Quando passei, Gilberto me saudou com o Shalom de sempre e puxou papo. Dia quente de céu azul, o cheiro do cachorro-quente enchendo o ar, os carros passando, entabulamos uma conversa que já inventou um povo e está em vias de criar outro. Refiro-me ao apego ao texto bíblico e ao desejo obsessivo de não parar de extrair mensagens dele. Hábito que eu e Gilberto cultivamos com prazer. Só que há duas maneiras de entrar neste pomar secreto. Uma é penetrar as palavras sabendo que ali podemos encontrar uma infinidade de sentidos. Outra é fazer todo mundo ler pela mesma cartilha e, se alguém entender diferente, vêm as expulsões e as excomunhões para deixar claro qual a largura da estrada que o pensamento pode trilhar sem oferecer perigo.

Agora éramos três na esquina. De calção e chinelo, o recém-chegado foi dizendo: "Para entrar no céu tem que quebrar o ego". Olhei espantado, o homem me tocou. Quis saber de onde saíra aquela conversa budista de quebrar o ego e me mostraram o livro. Guardado com carinho numa pasta de plástico transparente, fechado com zíper a salvo de respingos impuros de fritura, o livrinho surgiu nas mãos do Gilberto. O autor é japonês, só podia. Argumentei que esta contribuição era do Oriente e eles, dois sábios seguindo a estrela de Belém, concordaram. Pouco a pouco, uma ponte de entendimentos de erguia sobre a fumaça do cachorro-quente e o abismo social que nos separa. A miscigenação holística dos trópicos dava vida às palavras geradas no ardor do longínquo deserto. Esqueci de dizer, um fícus centenário lança enorme sombra sobre a esquina, abrigando passantes que param para um lanche ou uma conversa bíblica.

Quando a cobra entrou no papo, peguei um guardanapo e anotei: narrash. Em hebraico, a língua em que a história foi escrita, cobra é narrash. Ao lado escrevi nirrush, que significa adivinhação. Os sábios antigos concluíram, comparando as palavras, que a cobra era sedutora e falava por alusões misteriosas como falam os adivinhos quando querem impressionar. O seu nome já dizia quem era. A cobra, o tal narrash, introduziu no paraíso o papo envolvente. Antes, Adão e Eva eram seres de luz. Sua relação era transparente, suas palavras claras. Depois de comer a fruta da enganação, Eva transou com a serpente e seu esperma misturado ao de Adão gerou filhos que perderam a luz divina da qual foram criados. Cobertos de peles, Adão e Eva ficaram opacos, perderam a existência translúcida e nós, descendentes desse triângulo pouco amoroso, vivemos até hoje falando através de vestimentas que disfarçam nossos objetivos. A cobra, como é fácil perceber, deixou vestígios. Prometemos coisas que não cumprimos, inventamos motivos que não existem, camuflamos sentimentos e intenções sob camadas de peles rugosas para que outros não percebam a luz de nossas intenções. E, quando alguém resolve falar claro, sem subterfúgios, é chamado de radical e, num julgamento cheio de cobras espertas, condenado ao desterro. Em certos países tropicais, estranhos são os que insistem em falar claro.

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