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23.2.05

Vera Malaguti: O medo e a violência interessam ao neoliberalismo
(Antonio Oséas)


O Jornal do Brasil, em sua edição deste domingo, citando pesquisa realizada pelo Instituto Gerp revela que o maior medo do carioca é a violência. O trabalho ouviu 400 moradores da cidade, de diversas regiões, todos com idade superior a 16 anos. Depois da violência, o maior medo é o desemprego, segundo a pesquisa. Para mergulhar na questão do medo, suas raízes e razões, (...) a editora Revan e a Livraria Argumento lançam o livro O Medo na Cidade do Rio de Janeiro ­ Dois tempos de uma história , escrito por Vera Malaguti em que o assunto é enfocado sobre a ótica da “cultura do medo”. (...)

De forma original e detalhada, Vera Malaguti enfoca em O medo na cidade do Rio de Janeiro a difusão do medo do caos e da desordem para neutralizar e disciplinar as massas empobrecidas, a partir da hegemonia conservadora. Para entender as bases do medo contemporâneo, Vera analisa os discursos sobre a segurança na conjuntura de pânico no Rio de Janeiro na década de 90 do século XX, paralelo ao estudo dos medos cariocas do século XIX, ao retratar a repercussão no Rio de Janeiro da revolta muçulmana escrava conhecida como a revolta dos Malês. Com isso ressalta as rupturas e permanências em relação aos medos de hoje.

Em entrevista exclusiva ao site da ABI, Vera afirma que “A inspiração para o livro veio da minha experiência na administração da "paranóia da segurança" e seus efeitos na guinada conservadora que aconteceu no Rio de Janeiro e no Brasil, a partir de 1994.Uma primeira área seria a da história cultural do medo e seu consecutivo impacto na vida social e política da sociedade”.

Vera é socióloga, mestre em História Social pela Universidade Federal Fluminense e doutoura em Saúde Coletiva pelo Insituto de Medicina Social da UERJ. Trabalhou com planejamento urbano e com planjamento social em vários projetos. Indicada pelo PDT, cujo Diretório Nacional integra, Vera trabalhou no Governo fluminense, nas duas gestões de Leonel Brizola.

Com sua experiência e sensibilidade social, Vera assegura que “Enquanto o medo servir para encobrir a necessidade de mudanças radicais na nossa sociedade, vamos assistir à escalada da brutalização e da barbárie que o neoliberalismo impõe à periferia do capitalismo. A cor do medo é a mesma. Se antes a fantasia era o quilombo, hoje o medo é o de que a garotada negra tome a praia, de arrastão. Enfim, que o morro desça - afirma Vera.

Segundo a socióloga, a cultura do medo é incentivada desde o século 19 pelas elites conservadoras para que a chamada ’’ordem social’’ seja mantida. A difusão do medo serve, assim, para detonar estratégias de disciplina e neutralização das massas pobres.

- Naquele tempo, o medo era de uma revolta dos escravos. Todos os discursos - o jurídico, o médico, o literário e o da imprensa - tratavam de disseminar este medo. Mas, ao analisar aquela sociedade hoje, é óbvio que ela estava pronta para explodir a qualquer momento, tantas eram as diferenças sociais e a hierarquização - observa Vera, que partiu da Revolta dos Malês (escravos muçulmanos que sabiam ler e escrever), na Bahia, em 1835, para fazer a pesquisa.

Na opinião da socióloga, não foram desenvolvidas políticas sociais para vencer o medo. Pelo contrário: o que se percebe, segundo Vera, é que as políticas criminais e penais dos dias de hoje são bastante parecidas com as do século 19.

- O medo induz ao conservadorismo e ao pedido por políticas duras. As pessoas querem penas mais longas, querem que o inimigo seja morto. E o que vemos é o extermínio da pobreza e de jovens negros de forma contínua - afirma Vera. - O medo é o fio condutor para esta paralisia que mantém nossa sociedade hierarquizada.

Sobre o papel dos meios de comunicação social para contrabalançar a “neurose social do medo”, Vera Malagutti afirma que “O papel da imprensa é fundamental. Eu acho que existe um grau de incompetência pela desinformação. O debate sempre exclui o que não se adapta ao "discurso único" que é econômico e também penal. A questão da violência e da segurança acaba caindo num círculo vicioso que se arrasta na história do Brasil. Na conjuntura em que eu trabalho o século XIX no Brasil, há uma mobilização intensa no sentido de que a Independência se traduza num processo de emancipação do povo brasileiro. As revoltas dos Malês na Bahia, dos Cabanos no Pará, dos Farrapos no Rio Grande do Sul também foram criminalizadas pelo conservadorismo da época. O medo produz conservadorismo.

Vera relembra o papel da imprensa no famoso episódio dos “arrastões” de 1992: “Se você analisar a imprensa, arrastão só aconteceu naquela conjuntura. Acontecimentos análogos que aconteceram depois tinham outras denominações, como briga de gangues etc... O "medo do arrastão" faz parte do imaginário de uma elite que acha que os pobres não devem frequentar a orla porque "sujam", atrapalham a paisagem etc... É uma cisão urbana apartadora. Muita gente reclamou quando Brizola ligou, através de transporte coletivo, a Zona Norte à Zona Sul pelo Túnel Rebouças. Eu lembro de um artigo, se não me engano do JB, que ironizava este sentimento e que se chamava: Sombras suburbanas nas areias de Copacabana, ou algo assim. O já esquecido factóide do Piscinão de Ramos, que foi até cenário de novela da Globo, cumpria esta missão: desestimular o acesso às praias.

Vera defende, com veemência uma nova maneira de encarar a relação pobreza-violência: “Eu acho que a relação entre a questão social e a violência não é no sentido de que a pobreza produza violência. O que acontece é que o capitalismo contemporâneo exclui pelo social e inclui pelo penal. Ou seja, a pobreza é criminalizada. “No meu outro livro "Difíceis ganhos fáceis - Drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro" eu demonstro como o estereótipo muda de acordo com o perfil do jovem envolvido com drogas. O principal é compreender que o neoliberalismo destrói o Estado Previdenciário para construir o Estado Penal. Os excluídos das "reformas" serão "atendidos" pelo sistema carcerário. Estamos assistindo a um momento histórico único de magnificação enlouquecida dos sistemas penais. É como se tivéssemos desistido de enfrentar a questão social pela educação, reforma agrária, políticas de emprego para nos deixar levar pela policização da vida pública e privada. O importante é não mudar nada: manter a hieararquização, a desigualdade e o sistema de subcidadania do século XIX.

A autora aproveita para reforçar a idéia de que a Igreja, no começo da era moderna, de forma sábia manipulou e orientou os medos populares para consolidar seus interesses. Ressalta ainda que o medo coletivo foi de extrema importância na construção da sociedade urbana no Brasil. Esse medo invadiu e danificou vários segmentos da vida carioca. E até hoje esses medos são alimentados pelas elites urbanas para assegurarem seus objetivos, assim como o fazia a Igreja. Em um segundo momento, tal estudo enriquece uma outra área da investigação social: a da sociologia histórica da escravidão e seus consecutivos efeitos colaterais (incluindo a formação das hierarquias sociais). Vera afirma que a escravidão exerceu uma enorme influência sobre a divisão e organização da sociedade contemporânea. Nisso incluem-se discursos, práticas de instituições, como a medicina e a saúde pública, política, imprensa, e o não menos importante controle da criminalidade. Analogamente sugere que o policiamento seletivo, influenciado e guiado por classe e cor, onde o desrespeito a direitos fundamentais são violentados sem o menor pudor, nasceu ainda no conturbado período imperial, quando o racismo foi fundido ao senso comum da sociedade. O que nos leva a uma terceira área da investigação social: a antropologia da contenção material e simbólica das classes baixas na cidade. Encontramos então uma intensa mistura de penalização com racialização, ocasionando a “demonização da ralé”, como cita Loïc Wacquant (responsável pelo prefácio do livro). O que acaba por tornar impossível a separação da idéia de criminalidade da multidão urbana. O medo na cidade do Rio de Janeiro não se destina apenas a pesquisadores. Ele possibilita uma maior elucidação a cidadãos comuns que tiverem interesse em desvendar as razões pelas quais o “medo do outro” e a violência criminal tornaram-se obsessões da sociedade contemporânea, e o por quê das políticas de segurança públicas serem fadadas ao fracasso.

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