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22.3.02

Não sou de fazer planos a longo prazo. Tenho o hábito de ler tudo o que me aparece diante dos olhos.

Estava no final da adolescência e nem me lembro como chegou às minhas mãos um destes livros que ensinam a ser uma pessoa de sucesso e que enchem os bolsos, na verdade, de seus escritores e editores. Já naquela época percebi que se tratava de uma empulhação, mas achei divertido fazer um dos exercícios propostos e - sabe-se lá por que cargas d'água - fiquei com isso na memória.

Eu deveria fazer uma lista de tudo o que eu queria e deveria estabelecer um prazo para consegui-las. Era imperioso marcar uma data. Assim o fiz. Essa data é hoje.

Lembro das coisas que relacionei. Não alcancei nenhuma delas. Pelo menos não pelos caminhos que eu pretendia.

Passei pelos vinte guinando à direita, à esquerda, acima, abaixo. Era uma nômade sem causa, uma vagabunda emocional, uma irresponsável em muitos aspectos, séria demais em outros. Não esquentava lugar, inquieta de carteirinha. Aos vinte e cinco já tinha passado por coisas que muita gente de cinqüenta ainda está por viver. Achava bonito, excitante e assustador ter a vida inteira pela frente.

Os cinco anos seguintes foram de tempestade total e ainda assim meu nome do meio era festa. Tudo o que está na frente do palco da minha vida hoje veio desta época e houve uma convergência que me trouxe até aqui.

Não tenho um emprego estável. Não comprei um apartamento confortável. Não dirijo meu carro. Não vivo um caso como o de Simone de Beauvoir e Sartre. Não como maionese em todas as refeições nem Nescau com creme de leite todos os dias. Não fiquei famosa com meus escritos, nem de nenhuma outra forma. Não fiz nenhuma cirurgia plástica.

Tive um filho. Estou casada com um homem que em breve será canonizado. Vivo uma vida confortável. Freqüento salas de cinema, teatros, casas de espatáculos. Fiz uma viagem de sonhos a Paris. Moro na cidade mais linda do mundo, localizada no país mais rico cultural e geograficamente que se tem notícia, sem padecer nenhuma de suas eventuais mazelas. Algumas pessoas me magoam às vezes, mas há muita gente para me dar carinho. Há até os loucos que me amam. Abro as janelas e vejo um grande estádio, muitas árvores, um rio, passarinhos, gente de todo tipo, uma grande avenida, carros e ônibus, um pedação do céu, o sol da manhã, nuvens, a lua desbundante nascendo, estrelas, a ponte Rio-Niterói, a Floresta da Tijuca, prédios, casas, morros verdes ou ocupados pelas favelas. Alguns querem me tirar o que outros me dão de mão beijada. Geralmente tenho boa saúde. Bons dentes, pele ruim. Levanto para fazer xixi de madrugada e tenho sono à tarde. Passeio por coberturas milionárias à beira-mar e por subúrbios longínquos, aceitando convites para réveillon regado a champanhe francês ou pagode encharcado de cerveja e caipirinha. Fumo desbragadamente. Trabalho em diversos projetos ao mesmo tempo e ganho muito pouco. Adoro calçar uma sandália de salto alto, mas me reconheço mesmo de Havaianas. Passo pela década de Balzac driblando a gravidade e com certa dignidade estética. Tenho sorte de não ter nascido na era da beleza rococó. Leio muito. Viajo de vez em quando. Prefiro a Lagoa à praia. Ainda tenho problemas para comprar sapatos e calças compridas. Minha casa é cheia de livros, discos, filmes, riso e choro de criança, jornais espalhados, almofadas, quadros, beijos e abraços... Tenho uma rede pendurada num canto da sala e acabamos de comprar um hamster. Recebo vários e-mails por dia e os amigos ligam. Quando tem festa muita gente aparece. A próxima oficina que meu filho vai freqüentar na escola é a de culinária; diz que quer aprender a cozinhar tão bem quanto o pai. Uso um perfume no dia-a-dia e outro em ocasiões especiais. Não uso tintura de cabelo. Ouço música clássica e Carmen Miranda do aparelho de som do vizinho. Em dias de jogos noturnos é difícil dormir. A rinite passou. Erro muito e sofro para limpar a barra. Distribuo bananas para quem está à espreita.

Compare os dois parágrafos anteriores.

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