Pesquisar este blog

22.4.02

DUAS


Os móveis escuros e tapetes, revestimentos, cortinas e almofadas surrados emprestavam um ar melancólico àquela casa. Tudo ficara do mesmo jeito que a mãe deixara. Talvez por isso, quando não saía, ela passasse tanto tempo à janela.

Dali, a uma altura pouco acima da cabeça de quem transitava pela calçada, ela via todo o largo. Mesmo quando nada parecia acontecer por ali, quando as crianças estavam na escola, os adultos nos escritórios ou cuidando de assuntos domésticos, os velhos recolhidos para a sesta, ela permanecia debruçada sobre o batente. Observava o calor da tarde incidindo preguiçoso sobre o triângulo que ela conhecia tão bem. Olhava o chafariz brincando de fazer-se arco-íris. Aspirava o odor das flores que ela ajudara a plantar. Sempre havia com o que ocupar os sentidos apenas jazendo ali.

A vizinha passou e perguntou se ela queria alguma coisa do comércio. Nada estava faltando, mas uma encomenda qualquer seria um pretexto para que a outra subisse para um café e, quem sabe, alguma conversa na volta. Coco! Assim poderia fazer um doce e mais tarde teria motivos para uma visita, para levar um naco para a amiga. Desses pequenos subterfúgios sobrevivia sua pacata vida social.

Retornando, Juju acomodou-se na poltrona coberta por uma manta quase tão rota quanto o forro que pretendia disfarçar. Estava ligeiramente suada, o batom escorrera um pouco pelos sulcos em torno da boca e alguns fios mais rebeldes haviam se soltado do penteado na altura das têmporas. Entretanto percebia-se estar diante de uma mulher que se vestia e perfumava com apuro, mesmo que isso pesasse sobre seu orçamento apertado. Ela mantinha-se apresentável mesmo após caminhar por um par de horas pelas ruas do comércio. Seu rosto estava levemente afogueado e ela, como de costume, trazia algumas novidades para contar.

Lena gostava dela imensamente. Sempre foram amigas e a diferença de idade nunca incomodou. Quando Lena nasceu, Juju já era moça feita. O parto fora complicado e D. Amância permaneceu quase inválida durante o resguardo. Juju, que virava, mexia, arrumava pretexto para aparecer, surgira definitiva e imprescindível, para ajudar no que fosse necessário. Cuidou da cozinha, da neném, da casa toda. D. Amância a tratava como criada e ela parecia não perceber. Tudo estava bem. Ela estava ali. Afeiçoou-se sincera e profundamente a Lena desde seus primeiros instantes de vida. Mas não durou por muito tempo o salvo-conduto de Juju naquela casa.

O pai de Lena elogiava o tempero da vizinha. O corte perfeito dos vestidos que ela mesmo confeccionava. Ria, brincando com ela e a filha na sala. Juju começou a sentir os olhares e palavras ferozes sobre si. Sabia que tinha algo a ver com o homem da casa e, assim que D. Amância pôs-se finalmente de pé, começou a evitar estar lá nos mesmos horários que ele.

Alguns perguntavam se ela não se incomodava com os insultos que saiam da boca de D. Amância e vazavam para os ouvidos dos vizinhos pelas janelas. Ela, verdadeiramente ou não, dizia que não estava certa se realmente sabia do que estavam falando.

Juju sempre fora para Lena um exemplo de feminilidade. A mãe pesadona e marcial, parecia ocupada demais cuidando da dinâmica rígida da casa e esquecendo-se de si. Juju orbitava sua vida e Lena jamais estranhara. Era mesmo assim desde começara a ter consciência de si. Juju permanecia solteira e Lena achava natural que a amiga preferisse estar em sua casa, apesar do humor terrível de sua mãe e das diversas restrições que impunha à presença da vizinha, a permanecer sozinha a dois portões dali. Não passou por sua cabeça perguntar exatamente por que a amiga jamais se casara. Sua natureza não era questionadora.

O pai de Lena falecera quando ela tinha doze anos. Juju tentava consolar a menina, mas acabava chorando junto. Intensificara a freqüência e duração de suas visitas. As duas tiveram que engolir a tristeza e descobrir a leveza para lidar com a dureza de D. Amância.

A viúva tornara-se ainda mais irascível. Exigia nada menos que perfeição em tudo. E demandava atenção especial e total ao adoecer grave e longamente alguns anos depois. Tiranizava a filha e a dedicada vizinha. Não deixava a filha sair para canto algum. Estudo demais e rua não eram coisas que uma mulher direita desejasse. De que adiantara tanto estudo para Juju? Um dia, um homem decente iria buscá-la dentro de casa, isso sim. Mulher sabida demais ficava cuidando dos filhos dos outros.

A amiga, então, contrabandeava livros que Lena lia escondido. Juju trazia novas receitas e especiarias para experimentarem, mudas e sementes para plantarem no largo em frente quando D. Amância se distraia ou caia no sono, ensinava novos pontos de crochê e bordado, ouvia rádio bem alto quando estava em sua casa para Lena também pudesse escutar da janela, já que a mãe não permitia música. Assim, numa rebeldia sutil, sobreviviam às torturas psicológicas a que eram submetidas. Lena, compulsoriamente; Juju, voluntária e solidariamente.

Lena pensava no pai e no que como criança não percebera. Desconfiava que ao pobre havia sido dedicado tratamento semelhante, sob a austeridade e formalidade que lhe impunha a mulher para mascarar um casamento infeliz e apático. Ela lembrava de lampejos de brilho no pai. Ele ternamente sorria para ela e para Juju sempre que D. Amância não estava por perto. Lena tinha um pensamento recorrente que afastava assim que ele começava a tomar forma: D. Amância, ditadora inata, abafara tanto a vida dentro daquele homem que abreviou seus dias. E quiçá tenha mesmo sufocado-se em rigidez, também morrendo cedo demais.

No dia em que D. Amância se foi, Juju segurava sua mão e a da filha. Depois do período regulamentar de luto, Lena começou a experimentar a vida além das fronteiras do seu largo. As amigas iam juntas ao cinema, ao comércio, envolviam-se em alguns projetos sociais e, sobretudo, freqüentavam a casa uma da outra.

Porque era assim, sentadas diante uma da outra, a mulher madura e a cinqüentona sacudida, que compartilhavam a solterice e uma solidão sublimada. Fazia dez anos que Lena e Juju só tinham uma a outra, dividindo o tempo que passava lento. Sem filhos ou netos, maridos ou pais idosos para cuidar, mantinham um ritual cerimonioso de cafés e chás, alguns passeios e uma espécie de dependência silenciosa. Conviviam sem jamais tocarem em assuntos pessoais demais.

Lena, aos trinta e oito anos, cultivava secretamente a esperança de encontrar ainda um grande amor. Dos sonhos românticos de Juju não sabia, mas desconfiava que um amor impossível, inconfessável e eterno a impedira de casar-se com qualquer outro.

A moça da janela era uma vitoriosa passiva. Conseguira, de alguma forma, manter uma improvável alegria de viver. Tirava prazer das coisas mais singelas. Era mansa, era doce, e, não se permitindo pensar demais, era feliz. E sabia que à sua frente estava aquela que ajudara na sua sobrevivência através de uma vida insípida e pálida. Ali estava a amiga, que agora, mais uma vez, perdia os olhos na mesinha repleta de porta-retratos que emolduravam os mortos da casa e erguia, distraidamente, a xícara de café em direção a um sorriso misterioso.


Nenhum comentário: