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13.5.03

Hoje seria aniversário da minha avó materna, se ela fosse viva.
Hoje é dia de comemorar a Abolição da Escravatura, diz a tia Cotinha.
Hoje, dizem, é dia de Preto Velho.



Homenagem aos Pretos Velhos


Os pretos velhos são espíritos de origem africana, que vieram dar mensagens aos seus seguidores quer sejam da Umbanda ou do Candomblé. Cultuados por alguns segmentos da nação de Angola, essas entidades são consideradas como ancestrais, como eguns dos Orixás.
A Umbanda considera o Preto Velho como entidade de luz, trazendo conhecimento e visão da cultura africana. Os Pretos Velhos são homenageados no dia da Abolição da Escravatura, pois, com a vinda dos negros para o Brasil, houve muita discriminação de suas tribos para que perdessem sua força religiosa. Dissolviam as tribos, misturando os negros da Guiné com a Angola, Nigéria com Moçambique, enfraquecendo assim, a cultura e a história dos negros. Como esses negros falavam dialetos diferentes, tinham dificuldade em se comunicar e só se entendiam através do culto aos seus orixás, além de terem sido submetidos a maus tratos e subjugados em seu culto, onde os reis e chefes das tribos eram os mais humilhados e escravizados; os colonizadores e padres obrigavam-no a seguir a cultura cristã. Para manter acesa a chama de sua fé e numa tentativa de cultuar os seus Orixás, os negros tiveram que aceitar os santos da Igreja Católica com a sua crença, formando, assim, o sincretismo religioso. Hoje, são os Pretos Velhos, as entidades mais luminosas que nos ensina com sabedoria, os valores de humildade, resignação, paciência e amor ao próximo.

(fonte)

PRETOS VELHOS, FILHOS BRANCOS:
um breve devaneio

Simone Carneiro Maldonado
Antropóloga
GRUPO DE PESQUISA RELIGARE
UFPB - João Pessoa


"É rei, é rei
É rei no seu congá,
É rei!..."

Assim diz um dos inúmeros pontos de chamada de Pretos Velhos na Umbanda, que é a forma religiosa mais representativa dos cultos afro no Brasil, contexto cultural em que se expressa com grande força, coberto de prestígio e de carinho este personagem tutelar aos ritos nacionais, reverenciado nas mais variadas formas, o Preto Velho.
Religiosidade, sincretismo, etnicidade, subalternidade, seriam alguns dos conceitos que seriam necessários para se construir à altura o tema deste devaneio. Mas justamente porque o devanear não tem um compromisso com teorias ou análises estritamente orientadas (sendo justamente o seu contrário...), permito-me escrever esta peça tal como ela está. Sugiro no entanto que ela seja lida diante da intenção com que está sendo escrita, como algo que remete à prática umbandista "brasileira" e "afro" e sobre a construção que aí ocorre de um dos arquétipos brasileiros, o do Preto Velho.
Para tal, passo a contextualizar este personagem que a Umbanda situa entre as entidades de luz, ou espíritos superiores em mérito, junto com outros tipos igualmente idealizados, como os "caboclos", os "mestres", os "orientais", as "crianças". São grupos de espíritos, de vibrações, de sintonias, de diferentes formas de relacionamento com o mundo dos vivos, por assim chamar o mundo dos "encarnados", que estão "na carne", que têm corpo, nós.
Ao classificar a espiritualidade, o mundo dos espíritos em "linhas" ou "falanges", Falange dos Caboclos, Linha de Preto Velho, Linha do Oriente (também muito conhecida por "linha dos Ciganos"), a Umbanda expressa a sua ordenação do universo tendo como referencial os domínios da natureza e da civilização, num mundo marginal. A natureza é o reino dos Caboclos, representação idealizada do índio brasileiro, que por sua vez se subdivide em "falanges" (Caboclos de Pena, Caboclos Flecheiros, Caboclos, do Mel) todas elas comprometidas com a mata, com a água doce, com o mel silvestre, com a cura, a "ajuda" e sobretudo com a justiça feita com a proteção do Pai Oxóssi (senhor das matas que preside a Falange dos Caboclos) e suas flechas.
No âmbito da civilização, juntamente com outras entidades como os "mestres", está a figura do Preto-Velho, o espírito nacionalmente reconhecido do ex-escravo africano como o tem construído o imaginário religioso brasileiro nos anos de escravatura e sobretudo após a abolição.
Na verdade, a afetividade de que se recobre a relação dos Pretos Velhos com seus "filhos brancos" expressa nos rituais sincréticos, remete às relações semi-familiares que se estabeleciam nas casas-grandes e os seus escravos domésticos. Se não, vejamos, no ideário nacional (e na prática "real?,concreta naquele passado), a Mãe Preta se situa mansamente como um terceiro elemento na díade mãe-filho, surgindo aí relações muito fortes de carinho e solidariedade das três partes: da Sinhá, da escrava e do menino branco, que não raro na literatura romântica aparecem aliados em confronto com a vontade férrea e patriarcal do homem branco, senhor de terras, dono de mulheres, de escravos e de meninos.
Eu diria ser este um substrato fundamental à re-criação e à reabsorção do escravo africano pela sociedade brasileira na Umbanda, mediante a construção do personagem do Preto Velho. Mesmo liberto, esse espírito continua vivendo no imaginário religioso de muitos brasileiros. Um desses modos de presença é a representação do ex-escravo negro que retoma a sua relação com a sociedade nacional, com os "filhos brancos" a cada sessão de Umbanda.

(...)

"Arruda tem luz
Tem poder e tem valor
Arruda tem força
Do pai superior

É rei ,é rei
É rei no seu congá
É rei, é rei
E vem para ajudar!"

Com fórmulas assim se invocam Pai João d'Angola, Pai Arruda, Pai Benedito, o Preto Velho do Menino Jesus e tantos outros "pais" e "avós" que são a representação dos ex-escravos nesta sua forma de permanência entre nós. É bastante comum que as entidades masculinas sejam chamadas de "pai" enquanto as Pretas Velhas são geralmente "vovós" que distribuem proteção, conforto moral, conselhos e receitas a quem os procura. Curiosamente nunca tomei conhecimento de que "vovós" fossem chamadas na abertura dos rituais, tendo elas no entanto também grande mérito e poder, em nada ficando a dever aos Pretos na hierarquia dos rituais e na procura das pessoas:

"É bonito e tem que ver
Pau sêco florar
É bonito e tem que ver
As pretas velhas trabalhar!"

É grande a quantidade de "pontos" de que estes são representativos enquanto associação dos espíritos dos africanos às flores, à idade avançada, a humildade, generosidede e doçura no trato com os "filhos brancos" com quem interagem em termos de parentesco simbólico. Geralmente idosos, cegos, mutilados ou trêmulos, os espíritos incorporados nos médiuns ouvem queixas e pedidos dos "filhos brancos", dão conselhos, prometem a ajuda, força e preces, pedem paciência, fé e receitam chás de entrecascas, de perfume, arroz, arruda, cominho, cravo branco, comunicando-se num modo de falar também sujeito a variações mas fundamentalmente manso e o mesmo em todos os ambientes, repetindo-se sempre a frase "i zi gaci di Deus" ou simplesmente "gaci di Deus (graças a Deus):

"I zi fi zabancado i zi gaci di Deus picisá dus abanhado i ni xopana di fi"

para dizer que

"O filho branco na graça de Deus vai precisar de uns banhos na casa do filho".

Ou ainda, no mesmo tom meigo e paternal,

?Gaci di Deus, o fi tuma us banho dos cravo e arruda machucadim, mai é picisi rezá pa saúde di i dá tomém us banho no galiba di fi, i zi gaci di Deus

que significa

?Na graça de Deus o filho toma os banhos de cravo com arruda machucadinhos mas é preciso rezar para a saúde e também dar banhos na criança do filho, nas graças de Deus?

Vale ressaltar um detalhe significativo na relação do Preto Velho com os seus filhos (i zi fi) que poderia instigar a mais um estudo dos fenomenos simbólicos e relações que ocorrem no âmbito dos rituais de Umbanda. Mesmo que se trate de mestiços, morenos, mulatos, "pardos" e até mesmo de negros, uma vez em consulta com um Preto Velho todos são "filhos brancos" (i zi fi zabancado), não parecendo ser a expressão "branco" neste caso um referencial étnico mas antes outros construto que é o da nomeação pelas "linhas de Congo" dos seus "filhos brancos".
No processo de ajuda, aconselhamento e consolo propiciado pelo contato com os Pretos Velhos, estes se apresentam (e são apresentados nos "pontos") cheios de mérito junto ao Pai Superior, a Jesus e à Virgem Maria, em grande medida pelos tormentos da sua vida de escravo na terra, uma espécie de resgate dos sofrimentos, mutilações, castigos e humilhações cujas marcas guardam na espiritualidade e que lhes foram inflingidos pela mesma sociedade a quem eles hoje vêm cuidar e consolar. São indicativos disso os "pontos de chamada" e de "despedida":

Pai Arruda vai baixar
Pros seus filhos ajudar
Com a força de Jesus
Ele vem pra trabalhar"

E no momento da despedida,

"Lá vai os Preto Velho
Subindo pro céu
E Nossa Senhora
Cobrindo com o véu"

Nos "pontos de Preto Velho" há também referências à negritude e ao trabalho, como se pode ver a seguir:

Quem arreia na linha de Congo
É de Congo, é de Congo, aruê!
Quem arreia na linha de Congo
Agora é que eu quero ver.

Preto com preto, Calunga,
Eu também sou preto, Calunga,
Na terra dos preto, Calunga,
Todo mundo é preto, Calunga!"

E no "ponto de Preta Velha",

Vovó não quer
Casca de côco no terreiro
Vovó não quer,
Casca de côco no terreiro
Que é pra não lembrar
Dos tempo dos cativeiro
Que é pra não lembrar
Os tempo dos cativeiro"

A inversão simbólica dos valores da hierarquia prevalecente na ordem social brasileira é um dos fenômenos que mais caracterizam os cultos afro-brasileiros. Nestes contextos, o "menos" passa a ser "mais", os últimos são os primeiros e o subalterno adquire um poder que pode chamar-se mágico. No caso do Preto Velho, a via para essa "ascensão" que se realiza durante os rituais foi o sofrimento a ele imposto pela mesma sociedade que a ele hoje se filia e se ajoelha aos seus pés por proteção e ajuda. (...)

Também aqui cabe lembrar o caráter de comentário reflexivo deste pequeno texto para poder permitir-me citar o filósofo Martin Heidegger ao dizer que a continuidade de um fenômeno significa muito mais do que a permanência do que o constitui.Muitas vezes a história conduz a modificações estruturais nas relações sociais e na produção da sobrevivência sem que no entanto certas vozes silenciem necessariamente de maneira radical.

(texto completo aqui)

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