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13.5.03

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(veja mais sobre este assunto na Jaula do Cordeiro)

Demarcando território
Ricardo Calil


09.Mai.2003 | Cacá Diegues é a Maria da Conceição Tavares do cinema nacional. Assim como a economista no episódio da focalização dos gastos públicos, o cineasta despertou uma espécie de histeria coletiva em sua classe com a polêmica do "dirigismo cultural".

Da mesma forma que Conceição, Cacá deu dimensão gigantesca a um problema irrisório, deixou de lado questões mais importantes e transformou um coadjuvante em vilão da história. Ao contrário da economista, porém, o
cineasta conseguiu o que queria.

Mas exatamente o que desejavam essas duas figuras históricas? Fora o bem do país, claro... No caso de Conceição, a resposta é difícil. Afinal, ela não ganha nada para atacar a focalização dos gastos públicos.

Mas sua atitude deve ter algo a ver com o fato de que o PT está obtendo êxito econômico fazendo o contrário do que ela sempre defendeu. Sentindo-se contrariada, mas sem argumentos, ela decidiu inventar que Marcos Lisboa,
secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, queria acabar com a universalização dos serviços essenciais.

No caso de Diegues, a equação é mais simples: ele é um cineasta que depende de dinheiro público para fazer seu trabalho, o novo governo acenou com a possibilidade de controlar os gastos com cinema...

O fato estranho é que Diegues não veio a público para defender a manutenção do sistema de financiamento estatal. Ele preferiu supor que o governo queria acabar com a liberdade de expressão com um suposto "dirigismo cultural".

Para Diegues, esse golpe na cultura estaria sendo tramado maquiavelicamente pelo secretário de Comunicação Luís Gushiken e pelo consultor privado Yacoff Sarkovas (aliás, nome perfeito para vilão de cinema).

A acusação de Diegues foi motivada por duas iniciativas do governo: a transferência do poder de decisão sobre as verbas estatais do Ministério da Cultura para a Secretaria de Comunicação e a definição de novos critérios para a concessão de patrocínios.

Segundo os critérios divulgados na semana passada nos editais da Eletrobrás e Furnas, conceitos como "contrapartida social", "valorização da cultura popular" e alinhamento a programas sociais como o Fome Zero deveriam ser levados em conta na definição dos projetos a serem patrocinados.

Na já célebre entrevista que deu ao "Globo", Diegues declarou ter visto nesses critérios "um golpe que pode provocar um desaparecimento do cinema brasileiro", "uma audácia autoritária que nem a ditadura militar foi capaz
de ousar", "uma intervenção de choque (...), um Bope ideológico", "uma vitória jdanovista (referência ao comissário stalinista da cultura)".

O conceito da "contrapartida social" é mesmo um tipo de aberração, mas ninguém o levava muito a sério até a entrevista de Diegues. Mesmo porque os editais não davam a entender que haveria interferência no conteúdo das obras ou que projetos sem contrapartida social seriam rejeitados.

Acreditar que essa idéia levaria a uma reedição do realismo socialista, como afirmou Luiz Carlos Barreto, é o mesmo que crer que o Brasil produziria a bomba atômica, só porque o ministro Roberto Amaral disse que o país não
renunciaria a nenhuma tecnologia nuclear.

No episódio todo, o fato mais revelador não foi o conteúdo dos editais, mas o exagero da reação de Diegues - seguido depois pelo establishment da classe artística. Foi menos uma defesa da liberdade do que uma demarcação de
território.

Nesse sentido, foi uma atitude muito bem-sucedida. Diegues conseguiu que os novos critérios fossem abandonados antes que eles se estendessem à BR Distribuidora e à Petrobras, os principais financiadores do cinema brasileiro. A rapidez com que Gushiken voltou atrás na questão mostra que nem mesmo o governo fazia tanta questão da "contrapartida social".

Mais importante, Diegues conseguiu que o poder de decisão sobre as verbas das estatais para a cultura (cerca de R$ 200 milhões por ano) voltasse para seu amigo Gilberto Gil, que fingiu lavar as mãos no episódio. Nunca é demais
lembrar que o secretário do Audiovisual, Orlando Senna, foi sugerido a Gil por Diegues.

Agora, o ministério de Gil poderá escolher quais projetos serão patrocinados e ainda fiscalizar a aplicação das verbas. A Ancine, agência que controla os gastos com cinema, foi incorporada pelo MinC no mês passado. Com sua pouca experiência política, Gil já ganhou mais poder em quatro meses de mandato que muito ministro rodado.

É importante destacar que Diegues não está sozinho nessa luta. Ele foi apoiado pela classe artística nacional. Embora, a julgar pelas fotos da reunião com os ministros, toda a classe seja oriunda da zona sul carioca.

O dado mais curioso nessa história é que a maioria absoluta dos artistas apoiou Lula na eleição. E, como lembrou o cineasta Jorge Furtado (talvez o único a escrever algo sensato sobre o episódio), o item 40 do programa de governo do PT dizia praticamente a mesma coisa que os editais da Eletrobrás e da Furnas:

"Nosso governo adotará políticas públicas de valorização da cultura nacional, em sua diversidade regional, como resgate da identidade do país.

Para realizar esses objetivos, será necessário encontrar novos mecanismos de financiamento da cultura e de suas políticas, que não podem continuar, como hoje, exclusivamente submetidos ao mercado" .

Os artistas apoiaram Lula porque eles queriam mudanças. Agora, porém, eles parecem seguir a idéia de Lampedusa de que tudo precisa mudar apenas para ficar como está. De qualquer forma, é bonito ver a classe artística tão
mobilizada. Não se via tamanha união desde o linchamento moral de Regina Duarte na campanha eleitoral.

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