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11.5.04

Kill Bill


Uma vez assisti na televisão a uma entrevista Maria Adelaide Amaral em que ela falava sobre a língua e os povos. Ela contava de uma viagem de carro que fazia com amigos brasileiros pelo interior de seu Portugal natal quando resolveram parar e pedir informações:

- Com licença, senhor. Bom dia. Esta estrada vai para a Espanha, perguntou um de seus companheiros de jornada.
- Se for, respondeu o lusitano abordado por eles, há de nos fazer muita falta.

A autora usava o episódio para ilustrar as diferenças entre o idioma português falado no Brasil e aquele usado na terrinha, observando que eles diziam muito sobre o caráter de cada povo. Concluiu afirmando que não é o gênio da nação que molda a língua, mas a língua que determina os limites do pensamento da nação.

Algo como o defendido por George Orwell no livro 1984, onde uma nova língua é imposta. Assim, especulava o grande escritor, sem palavras como “liberdade” seria impossível dominar seus conceitos.

E ainda havia um artigo que li uma vez que aventava a hipótese de as expressões em cada idioma acabarem por entregar as mazelas de cada civilização. Um flagrante, por exemplo, no Brasil seria “ser pego com a boca na botija”, o que indicaria o delito de quem furta para saciar a própria fome, traindo a endêmica miséria. Já em inglês, “caught with a smoking gun”, traduziria o traço armamentista dos estadunidenses.

Arrisco ao ir um pouco mais longe dizendo que todo o produto cultural de um país é a transpiração de sua essência em termos de sentimentos e visão da vida.

Kill Bill
fala muito mais do que deveria sobre a substância da gente que na primeira metade da primeira década do novo milênio já invadiu dois países, sustentou um golpe de estado na América do Sul e apoia incondicionalmente todas as insanidades israelense. Kill Bill também deixa escapar que tipo de alma habita jovens que resolvem seus problemas saindo um dia para a escola com o irredutível propósito de chacinarem todos os seus colegas e professores. Kill Bill imprime na tela o mesmo sorriso que a soldado torturadora tinha no Iraque. Kill Bill espirra sangue e o mal gosto. Kill Bill pretende transformar em arte o grotesco, evocando a honra samurai, assim como Bush pretende convencer o mundo de que sua sanha petrolífera tem a ver com Deus e o espírito dos pais da América, que devem estar se revolvendo em seus túmulos. Kill Bill entrega tudo. Com o risco adicional de ser uma retroalimentação.

Uma débil esperança me faz acreditar que depois da publicação das fotos hediondas o mundo vai acordar e começar a agir em relação às arbitrariedades do império e talvez até acabe com a vergonha para a humanidade chamada Guantanamo e outras bases ianques espalhadas pelo globo. Também me permito crer que não financiando mais produções como essas com o suado dinheiro do meu ingresso posso ajudar - como o beija-flor que transporta em seu bico a água para apagar o incêndio da floresta – a transformar este mundo num lugar melhor, onde pessoas como Tarantino recebam tratamento de saúde adequado ao seu caso.

Se perder essa fé, talvez acabe concordando com aqueles que apontam o roteirista e diretor como genial e eu deva me auto-flagelar por ser tão inculta e não dominar o universo citado em seu filme, por não admirar o desrespeito à vida humana, por não vislumbrar toda a plasticidade de uma mutilação, de uma decapitação, de uma chacina, de uma multidão sanguinolenta gemendo.

Kill Bill é a obra perfeita para quem prefere deixar de lado tudo de bom com que os Estados Unidos brindou o mundo - desnecessário desfiar exemplos como rock’n’roll e Woody Allen - e escolhe a cardina e o chorume do Tio Sam.

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