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14.7.04

Além de poeta e benfeitora, pioneira e rebelde, sobretudo o melhor colo do mundo, minha avó adorava jardinagem. Quando ela faleceu, minha mãe com três crianças ainda pequenas e trabalhando fora fez o melhor que pôde para manter suas plantas. Nas últimas décadas, regou, podou, transferiu de vasos, plantou mudas...

Outro dia trouxe da casa da minha mãe vasinhos com mudas de antúrio e flor de maio, originários dos canteiros da vovó. E tanto quanto a cópia de seu caderno de poesias, essas plantas fazem, agora, parte dos meus tesouros.

Hoje logo que acordei, vi a primeira flor aberta no meu Zigocactus e pensei, como sempre, na minha fonte e referência de amor inesgotável, que me fez ser tão exigente nos meus parâmetros sobre o que é ser amada, e nessa crônica do Rubem Braga, que é a minha favorita.



FLOR DE MAIO

(Rubem Braga)

Entre tantas notícias do jornal - o crime do Sacopã, o disco voador em Bagé, a nova droga antituberculosa, o andaime que caiu, o homem que matou outro
com machado e com foice, o possível aumento do pão, a angústia dos Barnabés - há uma pequenina nota de três linhas, que nem todos os jornais
publicaram.

Não vem do gabinete do prefeito para explicar a falta dágua, nem do Ministério da Guerra para insinuar que o país está em paz. Não conta incidentes de fronteira nem desastre de avião. É assinada pelo senhor diretor do Jardim Botânico, e nos informa gravemente que a partir do dia 27 vale a pena visitar o Jardim, porque a planta chamada "flor-de-maio" está, efetivamente, em flor.

Meu primeiro movimento, ao ler esse delicado convite, foi deixar a mesa da redação e me dirigir ao Jardim Botânico, contemplar a flor e cumprimentar a
administração do horto pelo feliz evento. Mas havia ainda muita coisa para ler e escrever, telefonema a dar, providências a tomar. Agora já desce a
noite, e as plantas em flor devem ser vistas pela manhã ou à tarde, quando há sol - ou mesmo quando a chuva as despenca e elas soluçam no vento, e
choram gotas e flores no chão.

Suspiro e digo comigo mesmo - que amanhã acordarei cedo e irei. Digo, mas não acredito, ou pelo menos desconfio que esse impulso que tive ao ler a
notícia ficará no que foi - um impulso de fazer uma coisa boa e simples, que se perde no meio da pressa e da inquietação dos minutos que voam. Qualquer
uma destas tardes é possível que me dê vontade real, imperiosa, de ir ao Jardim Botânico, mas então será tarde, não haverá mais "flor-de-maio", e
então pensarei que é preciso esperar a vinda de outro outono, e no outro outono posso estar em outra cidade em que não haja outono em maio, e sem
outono em maio não sei se em alguma cidade haverá essa "flor-de-maio".

No fundo, a minha secreta esperança é de que estas linhas sejam lidas por alguém - uma pessoa melhor do que eu, alguma criatura correta e simples que
tire desta crônica a sua única substância, a informação precisa e preciosa: do dia 27 em diante as "flores-de-maio" do Jardim Botânico estão
gloriosamente em flor. E que utilize essa informação saindo de casa e indo diretamente ao Jardim Botânico ver a "flor-de-maio" - talvez com a mulher e
as crianças, talvez com a namorada, talvez só.

Ir só, no fim da tarde, ver a "flor-de-maio"; aproveitar a única notícia boa de um dia inteiro de jornal, fazer a coisa mais bela e emocionante de um dia
inteiro da cdade imensa. Se entre vós houver essa criatura, e ela souber por mim a notícia, e for, então eu vos direi que nem tudo está perdido, e que
vale a pena viver entre tantos sacopãs de paixões desgraçadas e tantas COFAPs de preços irritantes; que a humanidade possivelmente ainda poderá ser
salva, e que às vezes ainda vale a pena escrever uma crônica.

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