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27.9.01

Epílogo

Helena foi, de repente, arrebatada por um desconforto crescente. Aquilo que ela detectou nos olhos de João lhe pareceu comum e era completamente diferente do que via no rosto de Fred. Se Fred demonstrava carinho, desejo e admiração, o que era tudo aquilo com que convivera por toda a vida? Ela observou as pessoas a sua volta que a encaravam, como sempre. Estava muito perturbada. Quis ir embora.

A noite foi terrível, com insônia entremeada por pesadelos. Helena sentia-se despertando de um sonho bom para uma realidade tosca. Entretanto não conseguia divisar que realidade era esta.

Quando seu irmão chegou em casa vindo do treino no final da manhã, viu pela porta entreaberta que ela estava apenas de calcinha e sutiã diante da parede de espelho do seu quarto. Ia seguindo seu caminho.

- Mano!?
- Oi!
- Vem aqui um pouquinho...
- Tudo bem? Aconteceu alguma coisa?
- Não. Senta aí... Eu estive pensando em algumas coisas e queria que você me desse a sua opinião. Você acha que eu deveria fazer um tratamento ortodôntico?
- Bem... Você sabe que primeiro devia cuidar da sua respiração. Se você continuar respirando mal, pela boca...
- Isso mesmo! Sabe? Eu podia aproveitar a cirurgia de correção de desvio de septo para dar um jeito no nariz, né?
- Eu gosto do seu nariz. Ele tem personalidade.
- Mas aí o queixo ia sobressair... Bom, eu podia dar um jeito nisso também...
- O que está acontecendo com você, maninha?
- Sei lá... Eu queria mudar algumas coisas... Uma aluna minha da academia operou as orelhas e voltou prá casa no mesmo dia. E nem foi tão caro... Acho que ia ficar bem melhor se as minhas orelhas não aparecessem debaixo do cabelo. Talvez um permanente ajudasse a criar mais volume também...
- Ih! Relaxa... A gente gosta de você do jeitinho que você é.
- É mesmo? E prótese de silicone nos seios? A da mãe ficou tão linda! E um implante para aumentar o bumbum?
- Gente! Esse exercício de imaginação de auto-mutilação pelo jeito não vai terminar nunca. Olha aqui: eu vou para o meu quarto, que eu ainda tenho muito o que fazer, tá? E se você quer saber, acho você não devia procurar um cirurgião plástico não. Procura um ginecologista que isso deve ser TPM.
- Grosso! Tem certas coisas que a gente só pode conversar com outra mulher mesmo. Homem não entende nada...

Quando Fred chegou, logo percebeu que a namorada estava acabrunhada. Teve que insistir muito antes que ela começasse a dar pistas sobre o que estava acontecendo.

- Aquele seu amigo ontem...
- Eu sabia! Eu sabia que isso ia dar problema...
- Viu só? Então, deixa...
- Deixa nada! É melhor você falar o que está te incomodando prá gente tentar resolver logo.
- É que eu fiquei curiosa com as coisas que ele falou. Sua coleção... Você nunca me falou que fazia uma coleção...
- E não faço. É por isso que eu não gosto de badalação. Tem muita gente boba circulando por aí. Este cara é um deles.
- Do que é que ele estava falando, então?
- Deixa prá lá...
- Foi você que disse que a gente tinha que conversar para resolver...
- Verdade... Bom, ele faz parte de uma turma que eu conheço há muito tempo, desde a época do segundo grau, quando eu comecei a namorar a Sílvia. A gente se encontrou por causa de uma tragédia. Eu estava passando quando ela foi atropelada. Fui eu que chamei a ambulância, que liguei para os pais dela, que fui com ela para o hospital. A gente ficou amigo e eu ia visitar sempre. O pai dela trabalhava como louco para fugir do drama da filha, a mãe só sabia chorar. Fui que acabei assumindo o papel de acompanhante dela nas sessões de fisioterapia, de terapia... Era comigo que ela desabafava sobre o namorado que tinha sumido... A amizade acabou virando namoro. Eu ficava com ela quase o tempo todo. Era difícil. Às vezes ela ficava muito deprimida... Ela demorou quase dois anos para passar da cadeira de rodas para as muletas e mais outro ano para livrar-se delas. Quando tudo ficou bem, o ex-namorado reapareceu e... Bom, eu aproveitei uma chance que apareceu e fui estudar por um tempo no Canadá. Deve ter sido nesta época que você conheceu minha irmã e por isso a gente não se conheceu. Lá eu conheci a Anna. A gente chegou a pensar em se casar, mas eu não queria morar o resto da vida naquele frio. Eu sou um bicho tropical, você sabe... Ela ficou com medo de vir para cá e sofrer com o sol...
- Por quê? Ela não gostava de calor?
- Ela é albina. Aí eu voltei sozinho e acabei conhecendo a Júlia. A gente ficou junto um tempo, mas eu não consegui mais acompanhar o ritmo e a animação dela depois que ela fez o transplante de córnea. O João e a turma dele começaram a pegar no meu pé quando eu comecei a namorar a Lili. Ela praticava boxe e era bem forte e eles diziam que era melhor eu andar na linha senão ela ia acabar me mandando para a enfermaria. Quando me viram com a Arlete, então... Foi um escândalo. Mas o negócio com a ela não durou muito. Ela perdeu mais de cinqüenta quilos com a cirurgia de redução do estômago e só queria saber de malhar, de fazer trilha ecológica, de escalar a Pedra da Gávea e eu queria sossego.
- Tá! Pára de falar das suas ex que eu já estou ficando com ciúmes! Nem lembro mais porque você está me contando tudo isso. Ah, era a tal coleção, né? Quer saber? Deixa prá lá que eu não estou entendendo o que uma coisa tem a ver com outra e já estou ficando com vontade mesmo é de dar uma volta. Vamos pegar um cineminha?
- Eu prefiro um lugar onde eu possa ficar olhando para você...
- Tudo bem... Vamos ver o pôr-do-sol no Arpoador, então.

E Helena nunca mais pensou em cirurgia plástica

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