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5.5.02

"Afakakikorta da kortissendô"

Eu adorava os fonemas sonoros que tinham um sabor ancestral. Lógico que eu não tinha ainda a menor noção do que fossem fonemas ou ancestral. Tampouco imprimia sentido nas palavras da canção de ninar. Só bem mais tarde é que descobri, como uma revelação, que os versos diziam "a faca que corta dá corte sem dor".

Lembrei disso cantando para meu filho dormir. E, seguindo um fio de recordações e associações bem peculiar, fui viajando. Guardo memórias bem antigas. Ainda tenho a imagem, o cheiro e o toque de minha avó materna bem armazenados. Talvez sejam apenas lembranças das lembranças que cultivei durante estas três décadas e meia, já que me parece impossível realmente recordar de alguém que se foi pouco antes de eu completar quatro anos. E naquela noite em que cantava para meu filho dormir, me lembrei dela cantando para mim quando minha mãe perdia a paciência, do meu choro baixinho e soluçado, das figuras que imaginava na parede não emassada no canto da cama enquanto tentava me concentrar para pegar no sono antes que ela também desistisse de me embalar. Ela era minha segurança.

A sensação mais forte que tenho é daquele dia na cadeira de balanço. Tive um furúnculo na parte interna da orelha e um primo e um tio me seguraram com firmeza, enquanto minha mãe tratava de espremê-lo. Eu tremia de raiva, impotência e dor. E foi lá, no seu colo negro, gordo e quente que encontrei conforto balançando, balançando, balançando...

Minha avó supriu aquela carência que toda crinaça sente à chegada de um novo bebê na casa. Penso nisso só agora. Ela está forte dentro de mim porque eu passava muito tempo com ela. Imagino que minha mãe passava muito tempo então cuidando de minhas irmãs mais novas. Vovó era muito doente e sabia que tinha pouco tempo conosco. Éramos muito cúmplices e ela sabia que eu sofreria muito com sua partida, então tratou de me preparar. No dia em que foi sepultada, fiquei sozinha em casa com a empregada. Os adultos no cemitério e não sei onde estavam minhas irmãs. A mocinha me perguntou porque eu, tão agarrada com minha avó, não estava chorando (ela mesma estava escondendo mal suas lágrimas). Respondi que minha avó tinha pedido para que eu não chorasse quando ela se fosse, que eu ia viver muito, ter uma vida muito bonita e quando eu fosse bem velhinha como ela (mentira, ela não era tão velha assim) e também morresse, a gente ia se encontrar no céu, porque é isso o que acontece com as pessoas que se amam muito.

Estou vivendo a minha vida muito bonita. Tenho em mim a marca dos primogênitos. Sim, os primogênitos são diferetes dos caçulas e dos filhos do meio. Já repararam? Os primogênitos são sempre os mais sisudos e mais esforçados. Os caçulas são os carismáticos e os do meio, quando os há, ou são os mais livres dos papéis familiares pré-estabelecidos ou são os porras-loucas, as ovelhas negras.

É através do mais puro empirismo que afirmo que os casais mais harmoniosos são formados por primogênito-primogênito, caçula-caçula, do meio-do meio. Os filhos únicos ou permanecem solteiros ou casam-se com alguém com vocação para a servidão e para os bastidores. Observe: o filho único vai estar espalhado pelo sofá enquanto seu parceiro se espreme num cantinho; ele vai dominar a conversa enquanto o outro apenas abana com a cabeça, chamado a opinar apenas para confirmar o que o outro disse.

Meu lindinho dormiu e eu fui tomar meu banho para nanar também. E enquanto a água caia morna sobre o corpo, pensei que o "fator filho único disfarçado" pode ser o causador de algumas rusgas por aqui.

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