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19.11.02

Fato ocorrido recentemente me deixou boquiaberta, pensativa e muitíssimo preocupada. Determinado assunto tendo tomado conta dos noticiários foi comentado numa roda de conhecidos. Três pessoas presentes no local onde a ação desenrolava-se, em pontos diferentes, testemunharam que havia outros fatos além do que a grande imprensa estava noticiando. Seus depoimentos foram rechaçados com veemência e um toque de ultraje. O que não aparecia no jornal não poderia ser real. Pouco importa se seus amigos são testemunhas oculares e defendem versão ligeiramente diferente da que está na primeira página para vender jornal. Se a Fátima Bernardes e o William Bonner não anunciam, não existe.

Fiquei incomodada não apenas por ter, de certa forma, sido chamada de mentirosa, mas por perceber o que acontece com a mente de algumas pessoas que já não conseguem aceitar qualquer verdade a não ser aquela regurgitada pelas agências de notícias.

Então, escolhendo textos de Joel Rufino dos Santos para amanhã, encontrei este aqui e essa história que estava adormecida, mas não esquecida dentro de mim, acordou.


RELAÇÕES PERIGOSAS
Joel Rufino


"Lançamentos redimensionam a relação entre os jornais brasileiros e a censura", copyright Jornal do Brasil, 21/10/00

"Por que os jornais quase nunca dizem a verdade?

A pergunta só tem cabimento se nos pusermos de acordo sobre o que são jornais e o que é verdade. Periódicos escritos para comunicar existem pelo menos desde Roma. Já verdade, em nosso tempo, é o que você convenceu alguém de que é verdade.

Acabam de sair dois livros sobre regime militar e imprensa que repõem em discussão esse velho tema. Têm méritos diferentes. O de João Batista de Abreu (Manobras da informação) é exibir, por dentro, como se fazia jornal nos anos de chumbo; o de Anne-Marie Smith (Um acordo forçado) é retirar o foco da censura prévia, visível, instalada nas redações, e pô-lo sobre a autocensura, invisível, instalada nas mentes. Falo dos méritos principais. Ambos são duros com os grandes jornais, produzindo análises complementares do mesmo fenômeno.

Os presos políticos da ditadura não conseguíamos nos explicar aos colegas ?comuns?, com quem repartíamos alojamento. Os diretores de presídio tinham ordem para nos chamar de terroristas: ?carta para o terrorista?, ?tira o terrorista para ir à Auditoria?... Expliquei ao Pelezinho (um ?colega?) que nosso nome correto era revolucionários. ?Tomar de rico pra dar a pobre? Então o que vocês são é bunda-mole?, ele concluiu. Havia uma guerra dos nomes e, analisando o vocabulário da imprensa sob a ditadura, João Batista nos mostra que a imprensa nos ajudou a perdê-la. Aceitando nomear o opositor armado (e logo também os outros) de terrorista, os jornais designavam um sujeito sem história, sem significado, irracional e, portanto, disponível para qualquer violência.

Vinte anos depois, alguns ex-diretores de jornal (escrito e televisivo) se vangloriam de terem resistido à ditadura. Inocência ou cinismo? O regime militar não fechou diretamente nenhum jornal, embora, por exemplo, O Correio da Manhã e, mais tarde, o Opinião e o Movimento tenham sido levados a nocaute econômico. ?As pessoas que bancam hoje o papel do censurado, que agem como se tivessem sofrido muito, são ridículas?, escreveu Mino Carta (diretor de Veja, entre 1968 e 76). A censura, de fato, foi seletiva. O Globo, por exemplo, jamais foi censurado, nem a Folha de S. Paulo ? e, sintomaticamente, os dois são, hoje, sólidas empresas. Censurados foram O Estado de S. Paulo, Veja, O São Paulo (da Arquidiocese de São Paulo, leia-se D. Evaristo Arns), a Tribuna da Imprensa, Opinião e toda a imprensa alternativa.

Ficam em melhor situação moral - pela sinceridade - os diretores que aderiram à ditadura, aceitando sua violência sem, necessariamente, apoiar a censura. Como Boris Casoy, o âncora do impeachment de Collor: ?O que eu quero dizer é que havia pontos de contato [entre as maneiras de ver da imprensa e do regime]. Os jornais são empresas vinculadas ao capitalismo, ao anticomunismo, e nunca estiveram do lado dos guerrilheiros, até aprovavam a repressão contra eles. O resto nós não aprovávamos mas aceitávamos. Do fundo do meu coração, eu os apoiava, apoiava!? Ou como Walter Fontoura que, quando do retorno dos exilados, insistiu em que as acusações da ditadura contra eles eram um fato jornalístico em si: ?Para mim, tanto fazia se a acusação fora obtida à custa de tortura. A acusação ainda existia. Agora, se fosse verdade que ela fora obtida sob tortura ? bem cabia ao acusado prová-la, vir defender-se.?

Para que servem os jornais? Em nosso país, eles funcionam como aparelhos ideológicos do Estado. Isso não diminui o prazer matinal, ao café, que proporcionam, quase uma Bíblia; nem significa que jornalistas não se esforcem todo o tempo para lhes dar outra função. O jornal de denúncia, de defesa classista, étnica, baluarte dos direitos humanos sempre existiu no Brasil, mesmo sob as ditaduras. A grande e média imprensa, porém, é um diálogo exclusivo entre as elites instruídas, visando a manter a ordem social que as beneficia. Em 1972, o Brasil tinha 37 jornais por mil habitantes, a Argentina 154. Apesar disso, seu alcance político é grande. Por exemplo: essa pequena imprensa de um país que não lê jornais pauta os veículos de massa, decidindo, em última instância, o que se vai e não se vai ficar sabendo. É ela que cria essa outra natureza social, essa prótese do real, expressa na fórmula: ?deu no jornal?. Se deu, existe. (Um acordo forçado: o consentimento da imprensa à censura no Brasil, Anne-Marie Smith, 264, páginas, R$ 29 e Manobras da informação, João Batista de Freitas, Mauad/Eduff, 270 páginas, R$ 29)"


(Texto retirado daqui)

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