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20.11.02


Joel Rufino dos Santos
historiador, romancista, professor da UFRJ e membro do Comitê Científico Internacional do Programa Rota do Escravo, da Unesco


"Não lhe batiam por maldade, embora isso também ocorresse. A finalidade era esvaziá-lo da parte propriamente humana que todos os homens possuem - e são homens propriamente porque a possuem. Assim coisificado, o negro africano estava pronto para ser escravo."

"Numa noite qualquer do ano de 1597, quarenta escravos fugiram de um engenho no sul de Pernambuco. Fato corriqueiro. Escravos fugiam o tempo todo de todos os engenhos. O número é que parecia excessivo: quarenta de uma vez. Fora também insólito o que fizeram antes de optar pela fuga coletiva: armados de foices, chuços e cacetes haviam massacrado a população livre da fazenda. Já não poderiam se esconder nos matos e brenhas da vizinhança - seriam caçados furiosamente até que, um por um, tivessem o destino dos amos e feitores que haviam justiçado.

De manhã, certamente, a notícia correria a Zona da Mata - essa formidável galeria verde que, salpicada de canaviais, a uns dez quilômetros do mar, o acompanha sem nunca perdê-lo de vista. Tinham a liberdade e uma noite para agir.

Havia umas poucas mulheres, um que outro velho e diversas crianças, mas o grosso eram pretos fortes, canelas finas e magníficos dentes. Escolheram caminhar na direção do sol poente, um pouco para baixo. Com duas horas compreenderam que jamais qualquer deles havia ido tão longe naquela terra. Mesmo os crioulos, nascidos aqui, desconheciam o pio daquelas aves, nunca tinham visto aqueles cipós. Andaram toda a noite e a manhã seguinte; descansaram quando o sol chegava a pino; contornaram brejos e grotões, subiram penhascos e caminharam, um a um, na beirada de feios precipícios.

Se passou ainda uma noite. Eram observados, mas não tinham qualquer medo de índios. Então, na vigésima manhã se sentiram seguros. De onde estavam podiam ver perfeitamente quem viesse dos quatro cantos; com boa vista se podia mesmo vislumbrar o mar, além das lagoas. A terra, vermelho-escura, esboroava ao aperto da mão. Ouviam águas correndo sobre pedras. E havia palmeiras, muitas palmeiras.

Por que escravos fugiam?

A fuga era a única maneira de recuperarem a sua humanidade - esta é a melhor resposta que conheço."

Assim descreve Joel Rufino dos Santos, em seu livro Zumbi (ed. Moderna, 1985), o episódio que teria dado origem ao quilombo dos Palmares, na Serra da Barriga (que tem esse nome "talvez por parecer grávida a quem vem de Maceió, pelo Vale do Mundaú"), em Alagoas, onde é hoje o município de União dos Palmares.

(retirado daqui)

***


Memórias do cárcere


Vivianne Cohen

O quarto do escritor e historiador Joel Rufino dos Santos ficava a três andares do chão. Não era decorado com quadros, embora a tinta preta se destacasse da parede de tijolos largos. As fotografias e os livros ficavam acondicionados num canto. Em 12 de agosto de 1973, Rufino escreveria a primeira das 32 cartas enviadas ao filho Nélson, na época com 8 anos. "Moramos em quartos. O meu é o número 31", dizia um dos trechos. O menino sorria com o que pensava ser o diário de viagem do pai, quando na realidade as palavras enviadas por Rufino eram escritas de uma cela do Presídio do Hipódromo, em São Paulo, onde o escritor estava, junto com outros sete presos políticos.

Quando descobriu a verdade, o garoto, com lágrimas nos olhos, escondeu-se embaixo da cama abraçado à gaiola de seu passarinho de estimação. "Ele sempre resistiu à idéia de conversar sobre o assunto", recorda Rufino. Em maio, com 35 anos, Nélson rendeu-se ao passado ao revirar as cartas no fundo do baú. Os velhos envelopes corroídos pelo tempo foram reunidos em Quando voltei, tive uma surpresa, que Rufino, autor de mais de 20 livros infantis, está lançando pela Editora Rocco. "Só agora tenho a noção exata do que aconteceu naquela época", afirma Nélson, funcionário da Prefeitura do Rio de Janeiro, e pai de Eduardo, 6, Rafael, 4, e Isabel 2.

A tragédia familiar começou no reveillón de 1973. Militante da Aliança Libertadora Nacional, grupo armado que fazia oposição ao regime militar, Rufino viajava de São Paulo para o Rio de Janeiro para ver o filho e a mulher Teresa Garbayo dos Santos. Só não contava que fosse preso durante o trajeto e levado ao Dops (Departamento de Ordem Política e Social), onde seria torturado antes de ser encarcerado no Presídio do Hipódromo. Nos primeiros seis meses, Rufino sustentou a versão de que estava viajando a trabalho. "Eu tinha medo de que ele me confundisse com um ladrão."

O menino passou a visitá-lo na cadeia acompanhado da avó Felícia e da tia Bena. A sala de espera era o pátio, onde outros filhos de presos políticos amontoavam-se em dias de visita. As duas horas passavam voando e Nélson pouco falava de si para o pai. Antes de despedir-se, porém, esticava o braço e levava para casa um presente feito pelo pai no cárcere, que geralmente era um cinto ou um brinquedo de cerâmica. Nesse cenário, o garoto chegou a comemorar seu aniversário de 9 anos. Ao voltar para casa, aumentava a espera por mais uma carta de Rufino. "Eu pedia para minha mulher ler antes dele dormir, como se estivesse narrando uma história", recorda o escritor.

A correspondência era uma maneira do pai aliviar o sofrimento do menino. As histórias desviavam a imaginação do garoto da dura realidade dos porões da ditadura militar. Eram coloridas e cheias de desenhos. Em uma delas, Rufino agradecia pelas canetas hidrocores que ganhara do filho no último encontro entre os dois. E ainda destacava que era o único preso da cadeia a contar com tamanho privilégio. O futebol também era um canal de contato. Em 21 de julho, ele queria saber se o menino havia visto o gol do ponta Jairzinho na partida da Seleção Brasileira contra a União Soviética. E chegava a comparar o juiz que o condenara aos árbitros de futebol. "Na hora de respondê-las, o Nélson ditava suas cartas para mim", lembra a mãe Teresa.

Na vida real, o menino conhecia pouco da militância do pai. Em 1964, Rufino soube do nascimento de Nélson por um telegrama. Membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), ele vivia exilado na Bolívia e só veio a conhecer o garoto um mês depois no Chile, já em seu segundo exílio. "O Nélson já foi uma barriga sem pai", brinca Teresa. De volta ao Brasil, Rufino foi preso e ficou três meses longe de casa. Em 1970, trocou o PCB pela ALN e adotou o codinome Pedro Ivo. "Joel Rufino era um professor, que nos dava aulas de história", diz o deputado federal José Genoíno. Durante dois meses, ele foi companheiro de cela do escritor no Presídio do Hipódromo e chegou a ler correspondências que o garoto enviou ao pai e que ficaram retidas na prisão. "Foram as únicas coisas que eu quis levar quando saí", afirma Rufino.

Na volta para casa, em 1974, o escritor encontrou uma realidade diferente da idealizada durante os anos de cárcere. Havia perdido de uma só vez a mulher e o filho. "Não conseguimos nos reaproximar", diz. Separado, casou-se com uma adolescente, mas, em 1977, voltou para Teresa, com quem teve mais uma filha, Juliana, de 21 anos. No primeiro governo de Leonel Brizola no Rio, foi nomeado diretor do Museu Histórico Nacional. Hoje, Rufino é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e ocupa um cargo na Unesco. "Meu pai é um grande herói", diz Nélson.

(retirado daqui)

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