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10.3.03

O suor foi a primeira sensação que ela conseguiu definir fora do sono. A música que lhe ecoava nos ouvidos - ela começava a perceber - vinha da lira de Morfeu. As unhas estavam cravadas nas próprias palmas e ela precisou de muito esforço para abrir os olhos. O único movimento de seu corpo era o peito ainda arfante. Ela conseguira fugir do pesadelo.

Já amanhecia e era a quarta vez, desde que se recolhera na noite anterior, que aquele mesmo sonho ruim a perseguia. Ela acordava invariavelmente apavorada e a única coisa que conseguia reter era a canção.

O fantasma dele agora vinha pelas ondas sonoras. Assim, além das horas de vigília, a ausência dele também a comprimia nos momentos que deveriam ser de descanso.

Ele sempre dissera que um dia viria a ser artista famoso e ouvindo a música dele tocando em todos os lugares nos últimos tempos, ela tinha a certeza de que ele não havia se importado em abrir mão de sua arte. O amor corrompido, o artista corrompido, o sono corrompido...

Ela sabia que seria inútil tentar voltar a dormir. Dali a pouco já seria mesmo a hora em que ela precisaria levantar-se. De um salto foi tratar da rotina matinal. O dia no escritório prometia ser duro, com várias reuniões previamente agendadas. Ela teve que caprichar no corretivo sob os olhos e lamentou que não houvesse maquiagem semelhante para os sentimentos.

Ficou pronta muito antes da hora de sair, assim havia tempo para usufruir da quase sempre inútil assinatura do jornal, que ela acabava lendo à noite, quando as notícias já estavam muito velhas. Por um instante, a palavra velha ficou brincando em sua mente, enquanto ela pensava em si mesma. O mundo talvez fosse melhor se as pessoas não sentissem tanta pena e raiva de si mesmas, ela pensou afinal. Na terceira página do caderno de cultura havia uma foto dele ilustrando uma pequena nota sobre seu próximo show. Era irritante que ele se fizesse assim presente de todas as formas. Angustiada, ela pensava que teria que evitar o mundo todo para se ver livre dele, pelo menos por aqueles quinze minutos que lhe cabiam.

Um outro café talvez trouxesse algum alívio e ela foi à cozinha. Do basculante, que dava para a área interna do prédio ela ouviu o rádio de alguém que, num irritante bom humor matinal, acompanhava o refrão da maldita música.

Não importava o trânsito caótico, não importavam o baixo salário, o trabalho frustrante, as broncas injustas do chefe, não importavam a violência, a guerra, não importava a solidão. Já seria demais pensar que a falta de reconhecimento para seu próprio talento não importava. Isso importava sim. Entretanto, infelicidade suprema era ela ser "ela" numa canção ruim composta por alguém que decidira pelo sucesso e pela fama, em detrimento da arte e do amor.

Suspirou, quis encher o peito de coragem, mas acabou enfiando o queixo no colo. Abriu a porta e saiu para mais um ensolarado dia de pesadelo.

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