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2.10.01

Pode parecer maluquice, mas eu realmente gosto de andar de ônibus. Lógico que fora da obrigação cotidiana, dos horários em que é impossível caber mais uma mosca e sem grandes obrigações de horários. Gosto de estar perto de gente, de gente de verdade, daquelas que fazem números largos em estatísticas.

No meio da tarde, é possível sentar-se e, no conforto relativo que este tipo de transporte pode proporcionar, observar as mudanças na paisagem e da fauna humana que entra e sai à medida que o carro avança pelos bairros. Vejo em cada pedacinho da cidade um caráter próprio, expresso também na alma e na cultura peculiar de seus habitantes. Observo o homem caladão sentado ao meu lado. Perdido em seus pensamentos durante a viagem e sem me dirigir palavra, ele me conta sua história.

Ele é aposentado. Usa um chinelo estilo franciscano, uma calça que a sua senhora transformou em bermuda e uma camisa social com estampa antiga. A patroa também imprimiu sua marca ali, virando a gola puída para aumentar sua vida útil.

Não se queixa. O dinheiro da aposentadoria é pouco, mas pelo menos conseguiu, ao longo da vida comprar um terreninho e lá construir sua casa. Muitos de seus ex-colegas estão em maus lençóis. Aqueles que escolheram morar em apartamentos ainda penam com prestações intermináveis e taxas de condomínios extorsivas. É uma pena que aquele seu bairro, que antes era apenas simples e distante, agora tenha sido cercado por favelas onde traficantes impõem sua rotina de terror. A mulher já pensa em mudar de lá, mas a casa é boa e se fossem vender iam conseguir um preço muito baixo e ter se conformar em viver em um cubículo qualquer ou em morar com um dos filhos. Isso ele não quer de jeito nenhum. Não consegue se imaginar morando num lugar onde é preciso dirigir até para comprar pão. Ele sabe das suas manias. Em pouco tempo ele e a mulher se iam se transformar num estorvo. E o que seria dos dois sem os cachorros, o quintal, as coisas arrumadas do jeito deles e as amizades que cultivaram durante décadas com a vizinhança?

Os filhos ajudam muito e por isso as coisas não são mais difíceis ainda. O mais velho faz questão de cuidar de todas as receitas médicas. Ele e a patroa tem todos os medicamentos ao tempo e à hora. O outro contribui quando alguma coisa grande e urgente aparece. Foi ele quem pagou todo o material e mão-de-obra quando foi preciso consertar aquele vazamento no banheiro. A filha caçula está sempre por ali, ajudando a mãe, fazendo as vezes de motorista quando precisa.

Ele já teve carro. Um corcel, alguns fuscas e até um chevette. Hoje em dia não pode mais manter este luxo. Andar de carro só com os filhos. No resto do tempo, ele vai mesmo de ônibus. Aos poucos vai descobrindo as vantagens por ter vivido tanto. Não são muitas, mas não pagar passagem é uma delas.

As crianças – não adianta, ele continua chamando os filhos de “as crianças” – são de ouro. Aproveitaram bem o sacrifício que ele e a mãe fizeram para que tivessem uma boa educação. Colhem hoje os frutos de uma juventude mergulhada em livros, sem muita diversão, que o dinheiro era contado. Não gosta que eles todos tenham decidido ir morar lá para as bandas da Barra. Preferia ter a turma mais perto dele, ver os netos com mais freqüência, mas tudo bem. Ele tem muito orgulho dos meninos.

A única que deu algum trabalho foi a garota. Sempre foi agitada, meio rebelde. Dos três é a única que não tem um diploma. Mas agora que o filho está maiorzinho, está pensando em voltar a estudar. O neto é uma alegria na vida dele, mas ela podia ter tido um pouco mais de juízo e deixado que ele viesse quando a vida dela estivesse mais organizada. A gente não escolhe o caminho dos filhos. Depois de determinado ponto, só o que se pode fazer é torcer para que eles escolham a retidão. A gente também vai aprendendo que a vida devagar vai entrando nos trilhos, mesmo depois dos maiores sustos. Ele ainda lembra da cara da mulher e da decepção que ele mesmo sentiu quando a filha contou que estava de barriga. Ora, sim senhor! Foi um soco no estômago. O pai do menino fez tudo como manda o figurino e só não se casaram no papel porque queriam que quando acontecesse, fosse como nos sonhos dela, na igreja, com vestido... E ele estava começando a vida, andava desprevenido e ainda tinha toda a despesa com a vinda do bebê. A filha largou os estudos e só pôde começar a trabalhar depois que o bebê desmamou. Foi dureza. A família toda colaborou para construir uma casinha num cantinho que estava esquecido lá no quintal (os terrenos de antigamente é que eram terrenos de verdade), onde eles moraram até firmarem as pernas. Depois que eles mudaram para Jacarepaguá, o aluguel desta casinha passou a ajudar bastante.

No ano passado conseguiram fazer a cerimônia com tudo o que tinham direito. A alegria do pai que conduz a filha até o altar apaga qualquer coisa tristeza. Dona Encrenca chorou que nem bebê com o neto no colo. Êta mulher danada! Ele sabe que jamais vai conseguir dizer a ela o quanto ela estava bonita naquele dia e como ele ainda é apaixonado pela mãe de seus filhos. As roupas dos dois foram compradas pela filha, que queria todo mundo nos trinques. Ela vive insistindo para ele ir com ela numa destas lojas de shopping para escolher umas coisinhas novas para vestir. Pra quê? Ele não gosta de gastar dinheiro com bobagens.

Neste momento, ele está indo visitar uma irmã doente no Hospital do Andaraí. Olha o ponto chegando!

Despeço-me e agradeço em silêncio sua companhia muda.

No lugar que ele deixou vago, senta-se uma negra gorda...

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