Pesquisar este blog

31.1.02

DO BAÚ III

ENVERSADORA



Talvez seja assim com todo mundo. Aos sete anos despertei de meu mundinho inconsciente. Eu já conhecera a morte, a miséria pela janela, a injustiça, a violência, a inveja e outras tristezas, mas até então permanecera ainda ligada ao Guf, lugar onde, segundo o filme A Sétima Profecia, habitam as crianças ainda não nascidas.

Nesta idade mudei de cidade. Lembro de estar sentada num murinho no hotel onde ficamos hospedados enquanto esperávamos o cheiro de tinta da casa nova dar uma trégua. Um rádio distante tocava um samba e eu chorava. Era apresentada à saudade. No restaurante do hotel havia uma televisão que ficava ligada durante as refeições. E ali assisti ao incêndio do Joelma. Imagens fortes demais que colaram na minha retina e nos meus pesadelos. Claro que amava os pães de queijo, as aulas de natação, as roupas pesadas de um inverno seco, os novos amigos... Mas lamentava a perda do universo que conhecia. No diatante subúrbio carioca ficara meu Rosebud.

Não sei se por questão de sobrevivência psicológica, processo natural ou doidice, a Enversadora nasceu. Eu era então duas: a menina tímida que todos viam e a que apenas eu conhecia, que observava o mundo com olhos críticos e perspicazes. A Enversadora via uma situação e imaginava desdobramentos, como as coisas haviam chegado até ali... Ela também contava histórias para Carla,
mostrava detalhes... Foi minha companheira durante o restante da infância e um dia não estava mais lá da mesma forma. Talvez tenha se fundido, descoberto o caminho da unificação. E esqueci dela por muitos anos.

Voltei ao Rio e não encontrei meu Rosebud. Só há pouco percebi que é a Enversadora aquela que agora a maioria vê. É a menina tímida quem fica num canto obscuro de minha mente. Brincando com seu Rosebud...

Nenhum comentário: