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20.10.05

CARTAS ÁCIDAS

FLÁVIO AGUIAR

19/10/2005

O demônio da cordialidade


A campanha do “não” pegou impulso a partir de um argumento que encontrou eco: o de que “estão querendo tirar um direito seu” de ter uma arma. O problema é que essa mágica fetichista da posse oculta a verdadeira dimensão do problema: o direito à vida e a negação do poder indiscriminado de matar


A subida do “não” nas pesquisas sobre o referendo do desarmamento tem várias causas. As mais visíveis são:

1) O desfoque da campanha do “sim”, que durante algum tempo se perdeu em apresentar “bons exemplos”, através de gente bonita e famosa, ao invés de argumentos.

2) A confusão da própria pergunta, que exige que quem queira dizer “não” ao desregrado comércio de armas deva votar “sim”, e vice-versa. Provavelmente quem formulou a pergunta se baseou na crença de que “o brasileiro” tem mais dificuldade de dizer “não” em público do que “sim”, o que é uma meia verdade, pois nós sabemos que uma das maravilhas da língua portuguesa é que as palavras podem significar o contrário de seu uso dicionarizado, dependendo do tom com que são ditas.

3) O “não” mobilizou o que o país tem de mais reacionário, num amplo arco que foi da revista Veja, satanizando (de novo) o MST à argumentação irracional de extrema esquerda de que é necessário manter a livre capacidade da população se armar contra o Estado burguês e a direita, como se fosse isso que estivesse em jogo e como se isso fizesse algum sentido. (Imagino o comando revolucionário do futuro ofuscante dirigindo um pedido a uma fábrica de berros: “precisamos de 3000 três oitão na segunda-feira, às 15 horas, pois temos uma revolução para terça de manhã”). Esse reacionarismo político tem como objetivo comum transformar o referendo numa espécie de plebiscito antecipado sobre o governo, visando a eleição de 2006.

4) O referendo também mobilizou um sentimento antipovo difuso na Casa Grande brasileira, para o qual não há sentido em ficar consultando as “massas” sobre matérias importantes; aí também grassa a percepção, que também atinge o condomínio da classe média, de que é um “desperdício” gastar dinheiro com tais consultas. Há aí o temor de que essa “moda” de “fazer referendo” pegue.

5) É claro que o lobby da indústria de armas, em escala nacional e mundial, foi mobilizado contra o “sim”. O referendo no Brasil poderia ser um marco para que outros países adotassem iniciativas semelhantes.

Mas há algo mais. A campanha do “não” pegou impulso a partir de um argumento que encontrou eco, o de que “estão querendo tirar um direito seu”. O argumento é capcioso; na verdade, o que a aprovação da proposta poria em prática seria uma regulamentação estrita para quem queira possuir arma, cuja finalidade teria de ser explicitamente declarada: uso profissional, nas razões previstas, arma de caça em situação de acordo, exercício esportivo. Isso traria um golpe de morte (do ponto de vista legal) para as milícias particulares agenciadas por fazendeiros, grileiros, bingueiros e outros “eiros” da vida. Além disso, quem quisesse adquirir uma arma para aquelas finalidades teria de se capacitar de fato para tanto.

Lembro-me da aparentemente paradoxal lição de um sargento, quando fiz instrução de tiro no CPOR. Dizia ele que a primeira condição para se usar uma arma era jamais, em circunstância alguma, aponta-la para alguém. Por quê?, era a perplexa pergunta. Daí vinham as duas outras: porque se apontar, é melhor estar a fim de usar. E se usar, é melhor saber atirar para matar. A truculência da lição apontava algo de real, pois é disso que se trata: atirar para matar, matar ou morrer. O que vejo na campanha do “não” sobre o “direito” de se ter uma arma, é um argumento que na verdade se dissolve na mágica fetichista da posse, como se ela por si só fosse a suposta legítima defesa contra a bandidagem, e um ocultamento da verdadeira dimensão do problema, que envolve na verdade o direito à vida e a negação do poder indiscriminado de matar.

Por paradoxal que seja a palavra, os argumentos do não mobilizam o velho espírito da cordialidade brasileira. Quem já se encontrou com o conceito de Sérgio Buarque de Hollanda, e não sua simplificação direitista sobre a “índole pacífica(!)” do brasileiro, sabe que essa cordialidade mobiliza tanto a simpatia e o afeto, quanto a antipatia e o ódio. Ela se traduz na ocupação do espaço público pelas lealdades da vida privada, e na incapacidade permanente de se constituir o espaço das garantias individuais sob o domínio, ainda que conflituado, da lei, porque tudo se estriba na rede de pequenos e grandes favores que organizam de fato a vida e a sobrevivência, numa rede que vai da domesticidade aos passos governamentais.

A contrapartida da falta de garantias individuais não é o coletivismo desbragado; é o individualismo feroz. Essa cultura (a do individualismo feroz) se manifesta nos espaços mais espetaculares, como no trânsito, onde freqüentemente a posse de um carro equivale à expectativa de que se ditem as próprias leis, e maior esta expectativa será quanto maior for o carro ou a ignorância de quem o use. Ou nos espaços mais comezinhos, como nas farmácias. Em qualquer país medianamente organizado (não precisa ser rico) é sabida a dificuldade de se comprar remédios além de aspirinas sem uma receita médica.

Aqui não: muitas pessoas se drogam com remédios anunciados com o mesmo espírito fetichista com que agora se defende a desregulamentada posse de armas. A comparação não deixa de ser interessante, ainda que mera comparação: de agora em diante, para se adquirir arma e munição, vai ter que exibir uma receita, e uma receita com reconhecimento público (como a do médico), coisa que apavora o individualismo feroz, mas disfarçado, de que temos o direito inapelável de fazermos e portarmos onde quisermos nossas próprias leis. Inclusive aos banheiros públicos, como é notório e sabido.

Vivemos assentados sobre esse pequeno monstro adormecido, que ao menor sinal de perigo desperta de modo avassalador, nosso demônio da cordialidade construído ao longo dos séculos de colonialismo, império e repúblicas meia-solas que tivemos. Ele agora despertou novamente com toda força, açulado por uma série de acontecimentos, que vão das denúncias no espaço parlamentar, governamental e partidário, ao escândalo do futebol. Este último é paradigmático; primeiro, pela compra de um juiz (pelo menos) para fabricar resultados; depois pela decisão unilateral, feita a portas fechadas, sem apresentação de um único indício convincente, de anular em bloco os onze jogos postos sob suspeita; e por fim, quando os resultados do desmando aparecem, no quebra-quebra no jogo entre Santos e Corinthians, o autor da decisão dá as costas, lava as mãos e vai embora do tribunal como se não tivesse de prestar contas de nada!

Já no primeiro caso, vimos e vemos a apropriação indébita da sigla do PT, por membros da direção partidária, de parlamentares e membros do governo para seus próprios fins; seguida do festival de pirotecnia verborrágica por parte das oposições “criando” a versão de que a corrupção tinha sido inventada pela esquerda. No meio do caminho criaram-se dois personagens imortais da cordialidade: o nosso Iago, o ex-deputado Roberto Jefferson, até agora o único cassado. E Severino Cavalcanti, o indispensável (para derrotar Greenhalgh), depois o descartável (para tentar o impeachment de Lula com Nonô na presidência da Câmara de Deputados).

O interessante é que os dois lados da questão se deixaram devorar pela própria arrogância, contrapartida política daquele individualismo feroz da cordialidade cotidiana. Os governistas envolvidos acharam que não seriam apanhados; enquanto os oposicionistas acharam que já tinham a faca, o queijo e a tábua na mão e, ao se livrarem do Severino que inventaram, abriram espaço para a eleição de Aldo Rebelo, e agora parecem jogadores de futebol que perderam a bola, “rebels”, ou melhor, “homens da ordem without a cause e without a case”.

É verdade que vivemos um momento de desacorçoamento e perplexidade, e nós, da esquerda, tentamos refundar o afundado, seja sob a forma de uma recuperação da memória e do futuro do PT, seja sob a forma da abertura de um novo partido, seja ainda sob a forma de buscar nos movimentos sociais o elo perdido da militância.

É neste contexto político que a campanha do “não” avança, repetindo, de outra forma, o velho argumento de que quanto menos Estado na vida do cidadão, melhor para ele: são os neo-armados do liberalismo destravado ou os neoliberais das armas destravadas, tanto faz. Mas os tempos não são apenas de desesperança, melancolia, ou perplexidade. Em meio à balbúrdia, fica claro que o Brasil se acomoda mal no espaço dominado, ainda que subrepticiamente, pelo demônio da cordialidade, apesar dos mais reacionários continuarem prevendo que ele é um país inviável, de gente inviável, e que o melhor para quem pode é emigrar para um bang-bang norte-americano de segunda mão.


Flávio Aguiar é professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo (USP) e editor da TV Carta Maior.

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